Tudo começou numa denúncia e acabou com uma saída por «motivos familiares». Filipe Silva, CEO da Galp, estará numa relação com uma diretora de topo. A queixa anónima chegou à Comissão de Ética e Conduta da empresa por altura do Natal, como noticia o ECO. E começou a ser investigado um possível conflito de interesses. Mas não foi preciso chegar a qualquer conclusão para que Filipe Silva batesse com a porta e abandonasse a empresa onde trabalhou 12 anos, dois deles como CEO.
O Nascer do SOL falou com o constitucionalista Jorge Bacelar que se mostrou surpreendido com a forma como o caso foi tratado. «Isso, manifestamente, parece-me uma violação da liberdade pessoal porque as pessoas têm relações privadas com quem bem entenderem desde que isso não represente na empresa um conflito de interesses», comentou. «Claro que as empresas podem ter um código de conduta mas o código de conduta não pode comprimir o núcleo essencial da liberdade pessoal, do direito de personalidade. É assim uma coisa um pouco bizarra», acrescenta, garantindo nunca ter visto a possibilidade de se demitir um CEO por ter uma relação amorosa.
Sobre o facto de a relação ser com uma diretora de topo que tem que responder a Filipe Silva, Bacelar Gouveia questiona: «O que é que uma coisa tem a ver com a outra?», explicando o seu ponto de vista: «Por essa ordem de ideias, lembro-me de alguns deputados que eram casados uns com os outros de partidos diferentes e eram deputados ao mesmo tempo na Assembleia da República. E há casos de membros do Governo e deputados que são casados e isso não tem nenhum problema. Qual é o problema aqui? Acho sinceramente que isso é abusivo».
Neste caso, para o constitucionalista – que já considera abusivo a intromissão na vida privada – diz que «sendo uma empresa absolutamente privada, como acho que é o caso, ainda é mais fácil defender que isso, de facto, é inadmissível e é uma intromissão de uma moral pública numa relação privada que, neste caso, nem sequer se mostra ser prejudicial para a própria empresa. Acho que o único que deve julgar isso é o acionista».
O caso está – ou pelo menos estaria até à saída do CEO – a ser investigado pela Comissão de Ética da Galp. «As pessoas podem cometer falhas éticas mas não é pelo facto de estarem a namorar. Pode ser por outras razões quaisquer. O namoro não tira nem acrescenta nada do ponto de vista ético. É completamente irrelevante», comenta o constitucionalista.
No entanto, não é contra o facto de se investigar. «Agora tem que se ver se houve algum conluio, de não respeitar hierarquia, mas isso já não tem propriamente a ver com o namoro porque podia ser feito, por exemplo, entre duas pessoas amigas. Não é preciso ser namorado, os amigos podem fazer o mesmo. Mas aí já não é o problema da relação mas o próprio ato em si. Acho que a investigação deve existir, agora qualquer falha que tenha acontecido nunca pode ser imputada a uma relação de namoro mas deve ser vista em função do ato que foi praticado em si, se correspondeu ou não às exigências da própria empresa. Agora o facto de serem namorados, isso não tira nem acrescenta nada à conduta ética do dirigentes, a meu ver. Em abstrato, é inadmissível que seja um fundamento para a demissão do CEO», diz.
Poderia ter sido inconstitucional
A verdade é que já existiram casos que levaram à demissão de altos cargos devido a relações no trabalho. A título de exemplo, o CEO da McDonald’s Corp., Steve Easterbrook, foi demitido em novembro de 2019 devido a uma relação consensual de trabalho. Dizia-se que violava a política da empresa. Em fevereiro de 2022, o presidente da CNN, Jeff Zucker, renunciou após a revelação de um relacionamento consensual de anos com um colega. E, em 2023, o CEO da BP, Bernard Looney, demitiu-se por não ter sido «totalmente transparente» nos relacionamentos com colegas de trabalho.
Bacelar Gouveia atira que «isso é uma mentalidade protestante. É o puritanismo protestante. Nós aqui somos mais católicos, somos mais complacentes», defende. «Acho sinceramente, seja lá ou cá, não é nenhuma razão. É um abuso».
Como ainda não se sabia que Filipe Silva viria a sair do cargo, o constitucionalista alertou que a sua saída poderia vir a ser inconstitucional. «Não sei como será feito, deve ser por deliberação da Assembleia Geral mas tem que haver um fundamento porque a pessoa tem um contrato e não vai borda fora sem um fundamento razoável. Pode ser um despedimento sem justa causa». E era aqui que estaria o problema. «A questão pode colocar-se nestes termos por inconstitucionalidade. Isto é, não há justa causa porque a causa que é apresentada é inconstitucional. E ponto final. Acho que a questão pode ser vista assim».
‘Questões da vida privada’
O caso Galp faz-nos repensar sobre as relações no trabalho e é preciso tentar perceber se são ou não possíveis e como se deve proceder nestes casos. Ao Nascer do SOL, Raquel Caniço, advogada da Caniço Advogados, diz que, em boa verdade, «não há no ordenamento jurídico português nada que impeça ou proíba que duas pessoas possam ter uma relação amorosa e desempenharem, ao mesmo tempo, funções em cargos de chefia ou direção», uma vez que se trata «de uma questão da vida privada das pessoas». Portanto, à partida, não será possível demitir uma pessoa pela relação.
No entanto, Raquel Caniço adianta que «se é certo que as suas relações laborais não podem interferir na vida privada, não é menos certo que também a vida privada não deve interferir na relação laboral, o que nalgumas situações, poderá levantar a suspeita da não transparência e favorecimento», comenta, acrescentando que «a questão reside, sobretudo, se à entidade que superintende a ética e as boas práticas de empresa foi efetuado o devido registo de interesses e comunicação de eventual conflito de interesses, com vista a afastar a suspeita de que uma relação amorosa possa condicionar ou favorecer alguma decisão tomada pelo CEO».
O nosso jornal tentou ainda perceber se caso as pessoas em questão não tivessem cargos tão elevados, o caso seria tratado da mesma forma. «Depende precisamente da influência nas decisões, que essas relações pessoais ou amorosas possam ter interferência», diz a advogada.
A advogada explica que o conflito de interesses «pode ser aparente ou real, o que significa que só apurando os factos através de uma investigação é que se poderá saber se houve ou não tomada de decisões condicionadas pela relação amorosa que possa ter posto em causa a integridade da empresa para com os acionistas e/ou para com os outros trabalhadores e até com fornecedores da empresa».
Questionada como se procede num caso destes, diz que «por imposição legal tem de haver um canal de denúncias em empresas com mais de 50 trabalhadores, cujos procedimentos de averiguação e de investigação estão regulados na Lei designadamente, os prazos de resposta e formas de afastar o eventual conflito de interesses e suas consequências, consoante a natureza da denúncia», acrescentando que as empresas estão obrigadas a informar «qual é o canal de denúncia de forma clara e transparente, que pode ser um endereço de e-mail, uma plataforma on-line, uma linha telefónica, ou através até de correio normal, assim, como também tem de nomear alguém que tomará as devidas diligências de analisar a denúncia.
Por sua vez, Luís Couto, sócio da SPCB Legal, explica que é preciso distinguir dois planos: «o da relação laboral e o da relação de administração». Distinguindo as duas, «em princípio, a mera existência de um caso amoroso entre duas pessoas de uma empresa não poderá, por si só, levar ao despedimento com justa causa de um trabalhador ou trabalhadora, ainda que resulte de regulamento interno (código de ética) a proibição de relacionamentos entre colaboradores da mesma organização». Luís Couto detalha que esta norma regulamentar «poria em causa o direito à reserva da vida privada, que tem consagração constitucional e legal, pelo que seria sempre ferida de ilegalidade e inconstitucionalidade» e, para que «o relacionamento amoroso possa fundar um despedimento, sempre terá resultar do mesmo a violação de qualquer dever laboral, com prejuízo para a atividade da empresa, que seja de tal forma grave que ponha em causa, de forma imediata, a continuidade da relação laboral».
E deixa um exemplo: «Se um dos envolvidos na relação transmitisse, comprovadamente, ao outro segredos empresariais, a que este não teria acesso, tal já poderia configurar fundamento para o despedimento, que, assim, resultaria dessa violação do segredo empresarial e não, tão só da mera existência da relação amorosa».
Já no que diz respeito a um administrador, Luís Couto explica que, «não beneficiando este da proteção da lei laboral, se a proibição de relacionamento amoroso resultar de regulamento interno (código de ética) ou dos termos contratuais estabelecidos entre as partes, já se pode admitir, pelo menos em tese, que a violação dessa obrigação expressamente assumida pode sustentar a sua destituição com justa causa, por isso, sem direito a indemnização».
Cingindo-nos «unicamente ao caso da violação do regulamento interno (código de ética) por parte de um administrador, caberá sempre à Assembleia Geral apreciar os factos que constituirão justa causa e deliberar a destituição do administrador», diz o advogado, explicando que o artigo 403º, n.º 3 do Código das Sociedade Comerciais, «permite, contudo que um ou mais accionistas titulares de acções correspondentes, pelo menos, a 10% do capital social podem, enquanto não tiver sido convocada a assembleia geral para deliberar sobre o assunto, possa requerer a destituição judicial de um administrador, com fundamento em justa causa. A investigação sobre a existência dos factos caberá à entidade interna que tem competência para instruir o processo, por exemplo, a Comissão de Ética».
E se não tivessem cargos tão elevados? «Como referi, só no âmbito da relação estabelecida entre o Administrador e a sociedade, que não é de índole laboral, é que se pode equacionar que a mera verificação da existência de uma relação amorosa com subordinados ou pares, possa, por si só, levar à destituição com justa causa», diz Luís Couto, acrescentando que «já no que diz respeito à relação estabelecida entre a sociedade empregadora e os seus trabalhadores, vinculados por contrato de trabalho, a mera verificação da existência de um relacionamento amoroso sempre será insuficiente para constituir justa causa de despedimento, ainda que a sua proibição resulte inscrita em regulamento interno (código de ética)».