Patrice Trovoada. “O Presidente da República agiu como líder da oposição”

O Governo de Patrice Trovoada foi demitido pelo Presidente da República de São Tomé e Príncipe na segunda-feira. Carlos Vila Nova utilizou a constante ausência do PM para justificar a decisão inesperada.

Primeiro, a situação atual do país. São Tomé mergulhou num caos político, com o Presidente Vila Nova a demitir o seu governo na segunda-feira, após uma reunião do Conselho de Estado de urgência, na qual, mesmo depois de ter dito que esse não foi o assunto principal de debate, demite o seu governo com base na sua ausência regular. O que tem a dizer sobre esta justificação?

Em primeiro lugar, nós somos uma democracia funcional já há várias décadas. E a Constituição, evidentemente, prevê casos de demissão do Governo. Naquilo que é a situação da demissão do primeiro-ministro do Governo pelo Presidente da República, refletindo os termos do artigo, só pode acontecer se houver disfuncionamento das instituições democráticas e depois de ouvir o Conselho de Estado, o Presidente da República tomou essa decisão de manhã, na segunda-feira, sem ouvir o Conselho de Estado e sem justificar mesmo aquela reunião que, contraditoriamente, diz que não foi para falar da demissão porque, principalmente, não apresentou nenhuma razão ligada ao disfuncionamento das instituições democráticas. Quer dizer, podemos falar das viagens, que a situação do país é difícil, mas não é disfuncionamento das instituições democráticas. É talvez um olhar crítico parcial sobre a governação, e ele tem direito de ter esse olhar, mas não é razão prevista na Constituição para a demissão do governo. Por isso é que remeti o caso ao Tribunal Constitucional, porque todos jurámos servir e defender a Constituição e é preciso que isso seja mais do que palavra, que se traduza nos nossos atos. É evidente que eu estou perfeitamente confortável no que diz respeito a uma violação da Constituição por parte do Presidente da República. Mas eu também, homem de Estado e político, eu sei que é um ato político de demissão do governo e eu tenho também de gerir essa situação de demissão do governo. E como é que fazemos essa gestão? Fazendo essa gestão sempre, como tem sido o meu posicionamento político, no interesse das populações e no interesse do país, não pondo em primeira linha o meu interesse pessoal. Porque é que eu falo do meu interesse pessoal? Porque a conclusão a que muita gente, muitos observadores e muitos políticos chegam, não havendo fundamentos jurídico constitucionais, para demitir o primeiro-ministro, é um ato político pessoal do Presidente da República que tem, no meu entender, alguma dificuldade em conviver com o primeiro-ministro. Talvez um problema de ego, mas nunca uma razão jurídico constitucional. Se vocês virem os números da economia santomense de finais de 2022 até 2025 vão perceber que a situação de São Tomé e Príncipe é difícil, mas a recuperação económica que se traduz agora com a assinatura de um programa com o FMI é evidente. Não quero entrar em detalhes, mas a situação melhorou muito nos últimos dois anos em crise.

Voltando ao que disse sobre a decisão política do Presidente da República, gostava de saber o que explica esta rutura entre o Presidente Vila Nova, que é da mesma família política, e o primeiro-ministro. Terá sido com a questão das taxas aeroportuárias que começou a fricção?

O aumento de uma taxa aeroportuária é da responsabilidade exclusiva do governo, mas exclusiva mesmo, e não pode constituir uma razão de fricção, levando à demissão do governo. Bom, as viagens. Eu confesso que depois dessa crítica sobre as viagens fui contabilizar quantas viagens fiz, e de facto viajei um terço do ano, estive fora do país. Mas não fui também contabilizar quantos Conselhos de Ministros a lei permite fazer via Zoom. Quantos despachos fiz via Zoom e quantas dessas viagens se traduziram em iniciativas, contratos, acordos, negociações e também, eu diria, a credibilização da imagem externa de São Tomé e Príncipe. Por isso não se pode dizer que isso constitui razão suficiente para a demissão de um governo. Não faz sentido. Se eu vou para o aspeto de razões pessoais, de deslealdade institucional – também vi isso – então o fórum próprio é o Conselho de Estado. O Presidente da República, como diz a Constituição, devia, no Conselho de Estado, perante os conselheiros, dizer ‘Eu tenho estas razões, e do ponto de vista da deslealdade, o primeiro-ministro comportou-se assim, assim, assim, assim e assim’. Aliás, as reuniões do Conselho de Estado não são públicas exatamente para permitir essa abertura antes de tomar uma decisão tão grave que é a demissão de um governo com maioria absoluta de 30 deputados e que é ainda suportado por um partido que tem cinco deputados, totalizando quase dois terços do Parlamento. A fonte de legitimidade que nós temos é a mesma que o Presidente da República. Nós somos eleitos através de um parlamento por sufrágio universal.

É estranho, vindo de um Presidente que já tinha sido seu ministro.

Como diz, o Presidente da República  foi seis anos meu ministro. Foi escolhido e apresentado por mim ao partido como candidato único às eleições presidenciais e teve toda a mobilização e o apoio do partido, sendo ele, de facto, um militante que não era um militante sénior do partido. Bom, qual seria o interesse do primeiro-ministro quando, durante as eleições presidenciais, ele próprio, durante o comício dizia ‘Votem em mim, para o Patrice vir e assegurar o Governo’, qual seria o meu interesse de entrar em choque quando a separação de poder é bastante clara? O Presidente preside, o governo governa. A interdependência é bastante clara e eu já fui quatro vezes primeiro-ministro e fui primeiro-ministro de presidentes de partidos opostos, historicamente opostos, não só ao meu partido, mas à minha pessoa e à minha família. E nunca houve problemas desse tipo. Então eu não sei. É preciso perguntar ao Presidente Vila Nova qual é o problema. Ele teve a oportunidade de falar no Conselho de Estado para fundamentar a decisão de demissão do primeiro-ministro e não abriu a boca sobre qualquer problema que ele tenha comigo.

O que me está a dizer é que as motivações para a demissão foram maioritariamente pessoais e não institucionais.

Eu penso que são motivos pessoais que ele nem teve a coragem de explicar. O que podia ter feito, que isso faz parte também de motivos que é preciso explicar. Ele não o fez e tem usado a retórica e a narrativa da oposição. Tudo o que andou a dizer das viagens é o que a oposição costuma dizer permanentemente. Mas isso convém, é o papel da oposição. Não é o papel de um Presidente que, no nosso sistema, é um árbitro, um fator de estabilidade do sistema. E aí ele agiu quase como líder da oposição, tomando uma decisão política que nos deixou, de facto, completamente perplexos.

Foi dado um prazo de setenta e duas horas ao partido que goza de maioria absoluta para apresentar um novo Governo. Não rejeitaram?

Nós não rejeitámos. Na nossa declaração política, dissemos que pretendemos que a Palavra seja dada de novo ao povo. O partido, maioritariamente, em comissão política, quer eleições antecipadas.

Maioritariamente rejeitaram a proposta do Presidente, então…

Não. Eu, como presidente do partido, tomei a decisão com a direção do partido e fiz a advocacia junto da Comissão Política para que, em nome da estabilidade, porque somos um país com uma situação económica e financeira extremamente difícil. Nós somos muito gratos ao apoio da comunidade internacional. A comunidade internacional tem outros desafios também em termos de ajuda pública ao desenvolvimento. Eu penso que uma instabilidade provocada por questões pessoais inconfessáveis pode penalizar grandemente não só a nossa população, mas também a comunidade internacional, que gostaria de apoiar São Tomé e Príncipe em questões mais concretas de desenvolvimento e não na resolução de querelas pessoais. Bom, uma eleição custa dinheiro. Então, eu realmente continuo a dizer que um ato político desses que viola a Constituição só pode ser censurado politicamente. Não acredito que o Tribunal Constitucional de São Tomé e Príncipe possa deitar abaixo um ato político. Agora, ele deve ser censurado e responsabilizado politicamente. Uma maneira de responsabilizar politicamente alguém da mesma família que viola a Constituição como Presidente da República, para nós seria uma eleição antecipada que permitiria à população dizer se tem fundamento aquilo que alega o senhor Presidente da República Vila Nova. Se a situação é caótica, se o país não tem perspetiva, etc., etc. E aí ele seria responsabilizado politicamente. Estamos muito à vontade com isso, porque se nós tivermos uma eleição antecipada, o ADI, estou convencido, voltará a ganhar com maioria absoluta. Mas, por outro lado, a minha responsabilidade como alguém que foi primeiro-ministro quatro vezes em São Tomé e Príncipe, como alguém que conduziu as negociações extremamente difíceis com o FMI para chegarmos a um acordo, como alguém que fez advocacia económica e financeira junto de países como Portugal, Estados Unidos, organizações do Bretton Woods e outros, obriga-me também a tentar ver se este país não entra numa fase de paralisação que vai custar muito, quer aos programas que estão em curso, quer aos investidores e, em última instância, à população. Daí que, quarta-feira, decidimos mandar o nome do Dr. Hélio Almeida para chefiar o próximo governo. Uma maneira, eu diria, de resolver rapidamente essa crise para não atrasar o país. O país não tem orçamento, quero relembrar. E também para que fique bastante claro que se é um problema pessoal da parte do presidente Vila Nova com o primeiro-ministro Patrice Trovoada, não existe um problema pessoal do Patrice Trovoada com o Presidente Vila Nova e sobretudo não existe, da minha parte, uma sede de poder. Enfim, eu não estou agarrado ao poder, eu estou agarrado ao bem-estar da minha população, à estabilidade democrática e ao progresso. Daí que, como líder do partido, e vou continuar líder do partido, a visão do partido que eu ajudei a construir para o desenvolvimento será agora implementada por outro líder do partido e o próximo Primeiro-Ministro.

E já que falou do FMI e da ajuda externa, pode dar alguns detalhes desse acordo com o FMI?

O acordo com o FMI tem toda uma série de parâmetros que temos de respeitar. É um programa de cerca de 24 milhões de dólares. Mas o grande desafio é o setor da eletricidade e a reforma no setor energético, a transição energética. Porque o maior desequilíbrio macroeconómico que nós temos é devido ao custo de importação do combustível para a central elétrica de São Tomé. Depois existe, evidentemente, alguma disciplina em matéria fiscal e orçamental e também alguns ajustes a nível de algumas tarifas, o combustível, a eletricidade, mas tudo coisas que nós conseguimos, com o esforço necessário, fazer com que essas medidas difíceis sejam aceites. Como ponto de partida, o programa vai nos permitir beneficiar da ajuda orçamental e da boa disposição dos nossos parceiros, que já manifestavam em mesas redondas, nomeadamente no que diz respeito à descarbonização, nós conseguimos boas intenções dos parceiros e agora, no quadro do acordo, eu espero que o desembolso se fará mais facilmente. Contudo, é preciso perceber que a ajuda pública internacional tem vindo a cair e nós, no âmbito das reformas, nomeadamente do investimento, da fiscalidade, da desburocratização do país, nós pretendemos estar completamente virado para a atração do investimento externo. Mesmo para as infraestruturas, nós estamos como modelos de Parceria Público-Privada (PPP). Aliás, o novo aeroporto São Tomé e Príncipe é uma PPP e continuamos a querer ter um porto mais operacional do que o que temos hoje. Nós, de facto, privilegiamos o setor privado internacional.

Relembro agora a sua entrevista também ao nosso jornal, que fez há cerca de dois anos, onde disse claramente que encontrou um país carregado de corrupção. Que ações tem tomado o seu último governo, de 2022 para cá, para reverter essa situação?

Eu vou ser muito claro. Aliás, eu acho que a clareza vale muito na política, mas é preciso ter coragem também para ser claro. Nós não fomos a fundo na luta contra casos suspeitos de corrupção. Bom, podíamos ter feito mais, podíamos ter feito mais. Mas também as dificuldades eram tantas, os fogos eram tantos que nós correríamos o risco de estarmos completamente mergulhados nessas auditorias e nos processos e não termos capacidade, em termos de recursos humanos e de atenção para atender outras situações críticas que o país tinha. Bom, então muitos casos ficaram, eu diria, pendurados, o que pode dar um sentimento de impunidade, o que pode permitir que algumas pessoas, devido à falta de sanção, continuem, digamos, com comportamentos desviantes e pouco recomendáveis. Mas nós avançamos muito na reforma da Justiça, na reforma da Administração Pública, porque é aí que há a tentação de praticar atos de corrupção. E nós estamos a dar um grande, uma grande importância a digitalização e à governação eletrónica, de modo a introduzirmos muito mais transparência nas transações do Estado. Contudo, quero dizer que São Tomé e Príncipe, nos últimos relatórios sobre a perceção da corrupção, nós devemos ser o sétimo país menos corrupto da África. Somos 54, e nós sobre o sétimo menos corrupto. Mas eu confesso que não estamos ainda satisfeitos das ações e sobretudo, dos mecanismos que nós temos de luta contra a corrupção. A digitalização será, de facto, um ganho inestimável em matéria de luta contra a corrupção e em matéria também de gestão corrente das operações financeiras e não só do Estado.

Voltando às potências externas. Como avalia a situação de dependência, se é que existe, perante países como a Rússia ou China, que são rivais geopolíticos da comunidade ocidental, onde Portugal está inserido?

Não. A nível de São Tomé, não somos dependentes da Rússia. A Rússia é um país amigo de longa data e ante os amigos temos de falar claro. E dissemos a Rússia, e várias vezes provámos internacionalmente, que nós condenamos a agressão à Ucrânia. Isso foi bastante claro. Foi dito a representantes russos, a ministros russos e foi dito nas Nações Unidas pelo voto, condenando a Rússia, pela nossa participação na Suíça quando houve a conferência sobre a Ucrânia. Nós fomos bastante claro em relação à Rússia. Não deixa de ser um país amigo, os amigos às vezes cometem erros e não é por isso que vamos deixar de ser amigos, mas temos de falar claro com os russos. A China é um grande amigo, é um país que tem ajudado bastante São Tomé e Príncipe, temos uma cooperação ótima com a China. Não é só a cooperação bilateral, mas no que diz respeito também à posição sobre o clima e outras posições e ações que a China pretende desenvolver hoje a nível global. Nós costumamos, de facto, quando estamos de acordo com elas, mostrar também o nosso apoio à China. A nível internacional, o único país pelo qual nós nos solidarizamos para emitir a nossa opinião tem sido a Rússia, em que nós dizemos que a Rússia, de facto, criou aqui uma situação de violação do direito internacional e que tem que ser resolvida, bem resolvida. Não, não pelas armas, mas pela negociação. Esse é o nosso posicionamento. Evidentemente que nós observamos as relações comerciais entre grandes blocos, e nós observamos o posicionamento de alguns países em relação à China. A nossa opinião é que devemos todos trabalhar para o comércio livre. Nós pensamos que o protecionismo não é uma boa coisa. É verdade que a China, depois de ter sido a fábrica do mundo, hoje ela tem um outro posicionamento e o mundo tem evoluído. Nós estamos a falar hoje, evidentemente, da economia numérica. Estamos a falar hoje da inteligência artificial, evidentemente. A nossa posição como pequeno país que somos é que é preciso, de facto, o comércio livre. É preciso, de facto, o pagamento justo dos produtos que nós produzimos. São essas coisas que nos importam de facto. Os Estados Unidos e a China têm os seus problemas, nós ficamos à margem.

Como avalia a diplomacia portuguesa em relação aos países da CPLP, no geral, e em relação a São Tomé e Príncipe, no particular?

Bilateralmente, as relações com Portugal são excelentes. Portugal tem mostrado sempre bastante solidariedade para com São Tomé e Príncipe. Nestes últimos dois anos, Portugal emprestou-nos cerca de 30 milhões de euros, para além do programa habitual de cooperação. É uma ajuda inestimável. A nível da CPLP, por coincidência, São Tomé está a presidir à CPLP e é evidente que nós temos um problema com a CPLP, talvez pelo modo de decisão que tem de ser consensual num mundo em que existem várias situações, vários conflitos, uma organização que tem membros que pertencem também a outras organizações, geograficamente e economicamente, eu até diria ideologicamente diferente, não é? É muito complicado nós chegarmos a um consenso.

É como se fosse uma ONU em ponto pequeno.

Eu acho que sim. Nós temos posicionamentos políticos difíceis, temos toda uma constelação de organizações da CPLP que também, às vezes, dificultam uma tomada de posição. Então é complicado (risos).

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