O Matuto defende, com unhas e dentes, as virtudes musicais da MPB – Música Popular Brasileira. Aqui nas ‘Pontes’ – casa do Matuto e de sua gentil esposa, Dona Sirlei – a música é assunto sério. Seríssimo, na verdade. Os habitués da casa sabem disso. Daí que muitas vezes a conversa vá desaguar nas preferências musicais de cada um.
A Belinha – a frequentadora mais conservadora das ‘Pontes’ – tem andado a ouvir muito a Sade e o Joe Dassin. Tudo o mais lhe parece ‘atordoante’. Aposentou de vez os Police, Pink Floyd e U2, da vida. “Ando buscando o silêncio que a cidade não dá. Da paz que a cidade não dá. Da suavidade que esta cidade não dá, nunca deu, nem dará nunca. A ninguém. O negócio é grave, gravíssimo” – exaspera-se a Belinha. À noite tudo assume um ar mais, intenso, portanto,… mais grave, gravíssimo. E a Belinha gosta dos seus superlativos. O Marcello intervém – enquanto acende o seu Romeo y Julieta – “o que você precisa é escutar Eliete Negreiros”. Por entre o fumo (fumaça, no Brasil, por favor) do seu puro pede mais um cálice de aguardente envelhecida. Marcello é a visita que sempre agita as coisas. Revolucionário, moderno e irónico quanto baste, é sempre a causa das famosas picardias que tornam os serões nas ‘Pontes’ tão vivos. Vivíssimos. “Você ouve aquele blues dolorido acompanhado pelo sax de Roberto Sion e se acalma. No meio da pressa aquela voz mansa, afinada, afinadíssima (outra vez os superlativos) diz para você: sossega, sossega meu amigo. Tudo o que acontece na vida, é coisa de gente. Menina, quando a Eliete canta a vida pára de girar tão rápido e até parece linda, lindíssima” – entusiasma-se o Marcello, esbanjando na energia do grau superior.
O Matuto sabe de fonte segura que o Marcello está carregado de razão. Eliete Negreiros é serena no seu cantar. Na sua voz as coisas ficam mais doces, dulcíssimas. Dúctil, é o adjectivo – chega de superlativos – que vem à mente. Dócil… A vida apresenta-se mais moldável, domável. De repente o mundo todo reorganiza-se dum jeito mais sedutor. (é o momento dos adjectivos!)
“Pode tirar o cavalinho da chuva” – abespinha-se a Belinha. O Matuto sobressalta-se. “Música Brasileira é só a Maria Bethânia” – sentencia a Belinha. “Dá licença, Maria Bethânia é fundamental, fundamentalíssima” – voltámos aos superlativos. O Matuto pergunta-se: e o João Gilberto, o Vinícius, o Toquinho, o Chico Buarque, o Tom Jobim, a Adriana Calcanhoto, a Simone, a Marisa Monte, a Mónica Salmaso..? Mas a Belinha estava irredutível: “esta coisa a que chamamos vida como ela é, pode ser mais Nelson Rodrigues ou mais Clarice Lispector; no cinema, pode ser mais Spielberg ou mais Bergman; na pintura, mais Monet ou mais Pollock; na música pop/rock, pode ser mais Simon e Garfunkel ou mais Nick Cave; na clássica, mais Bach ou Mahler; na literatura brasileira, pode ser mais Graciliano Ramos ou mais Cecília Meireles; na internacional, mais Hemingway ou Bukowski…”. A Belinha emergiu para respirar. O Matuto teve vontade de aplaudir. O Marcello acende mais um Romeo y Julieta e estende a mão para ressuscitar a sua aguardente moribunda: “toleima, bobeira, tontarias”.
Todavia, a Belinha é inflexível. Obstinada! “O seu problema é ter medo de sentir. Fique sabendo que sentir não é brega: ao contrário, não existe nada mais chique. Emocione-se, e seja rei da sua insensatez. Jogue a sensatez para o alto. Seja nobre, seja humano, no desconcerto das emoções. Bethânia é muito chique! Chiquérrima”! O Matuto fica fascinado (fascinadíssimo). A Belinha é uma força da natureza. Um pouco como Bethânia no seu jeito inverso de ser beleza. Dá licença crianças, desliguem as guitarras eléctricas, parem os sintetizadores, e sosseguem as baterias. Sem barulhos nem frenesins, ouçam a voz quente da eterna Bethânia.
A garrafa de aguardente já vai a meio, o Marcello decidiu retirar-se e a tertúlia dispersou-se sem antes concordar que a Belinha estava insuperável. No silêncio nocturno das ‘Pontes’ o Matuto colocou na vitrola um disco de Bethânia. Neste mundo cruel, crudelíssimo, ouvir a voz agradável, agradabilíssima, de Maria Bethânia é preciso – matuta o Matuto. E, já agora, os superlativos por vezes são úteis. Utilíssimos, na verdade.