Pedro Sena-Lino. “D. João V era uma pessoa afetiva e aberta, o contrário da imagem que lhe pintaram sempre”

Andou a peneirar os manuscritos e as fontes diplomáticas da época e fez um retrato do Magnânimo bem diferente do que lhe costumam pintar. Em entrevista, de que publicamos a primeira de duas partes, o investigador fala de um Rei amado pelo povo, mulherengo, dado a acessos místicos e muito trabalhador.

Nascido em Lisboa em 1977, Pedro Sena-Lino chegou a pensar ser padre mas acabou por licenciar-se em Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa. Publicou poesia, deu cursos de escrita criativa e, depois de uma passagem por Berlim, atualmente ensina Português em duas universidades belgas – Gante e Lovaina.    

Integrou, como bolseiro, o projeto Portuguese Women Writers e foi aí que encontrou uma carta de D. Filipa de Noronha, «a primeira namorada oficial de D. João V» – uma descoberta que, sem ele o saber, haveria de estar na origem da atual biografia do ‘Magnânimo’.

Mais tarde, quando investigava para a sua bem-sucedida biografia do Marquês de Pombal (De Quase Nada a Quase Rei, publicada em 2020), este projeto recebeu um novo impulso. «A consequência lógica era andar um pouco para trás. As reformas do Marquês de Pombal não vieram do nada. Vê-se claramente agora que a raiz foram muitas coisas que D. João V fez», explica o autor.

A «velha teoria de que D. João V não gostava do Marquês de Pombal» foi outro aspeto que o intrigou e espicaçou. «Essa coisa, repetida ad nauseam por muitos historiadores, irritou-me. E andei à procura para ver se isso acontecia ou não».

Baseado em correspondência e testemunhos da época, El-Rei Eclipse (ed. Contraponto) oferece um retrato matizado de D. João V. Mostra um homem dado aos prazeres da carne, mas também à espiritualidade. Um amante do luxo, mas que se isolava por longos períodos na Arrábida. Um monarca que, para lá da projeção do poder e do aparato, gostava de se esconder. Por outras palavras: de se eclipsar.

Imagino que, quando uma pessoa se propõe escrever uma biografia de uma figura deste calibre, é como se tivesse uma montanha à frente por escalar. Por onde começaste?

Tenho sempre a mesma técnica: faço uma primeira divisão da vida da pessoa em partes, que é uma coisa mais ou menos orgânica. Enquanto vou descobrindo, vou percebendo se tenho de mudar ou não. Passo algum tempo só a ler sobre aquele período e, se aparece alguma coisa doutro período, tomo nota disso. Gosto de começar pelos historiadores que não são portugueses para ter uma visão externa. E li todos os manuscritos da época que consegui encontrar.

São muitos?

Não são muitos, porque muita coisa foi destruída em várias ocasiões. Há a erosão normal; depois, houve dois incêndios no palácio, um que afetou a biblioteca e o local de trabalho do ministro principal, o Diogo de Mendonça, e outro nos aposentos da Rainha – um incêndio um bocadinho mal explicado. E, claro, com o terramoto houve muita coisa que desapareceu. Mas há manuscritos de época, de vária ordem: algumas cartas que D. João V escreveu ao Cardeal da Mota; há o Arquivo dos Duques de Cadaval, a que infelizmente não me foi dado acesso, por mais que eu pedisse; e sobretudo as fontes diplomáticas externas. Vi muito as fontes diplomáticas francesas e fui ao Vaticano, e isso deu-me uma imagem bastante diferente do Rei.

Vi recentemente um documentário sobre o Stanley Kubrick que mostrava que ele, antes de se atirar àqueles projetos, gostava de reunir imenso material – livros, recortes, documentos, fotografias, pintura. Para um trabalho deste tipo fazes uma espécie de imersão na época?

Sim, por completo. Por exemplo, tento só ouvir música do período ou ligada ao período – embora já seja o meu gosto musical natural. Tento ler biografias dos contemporâneos, não apenas reis, mas outras figuras, não só para aprender com os meus camaradas biógrafos, mas também para ter uma ideia do que se passa à volta. E, claro, leio as biografias escritas em português e os trabalhos dos historiadores portugueses sobre esse período. Essa é a última coisa. Um dos grandes teóricos da biografia, Richard Holmes, defende que deves viver ao máximo os lugares e as circunstâncias em que a tua personagem viveu. É muito difícil fazer isso com o D. João V, porque desapareceu quase tudo. Mas há ainda papéis dele – e a arte, os quadros e as gravuras. Ele adorava mapas e portanto passei imenso tempo a ver os mapas antigos da Corografia Portugueza. Era um Rei com uma curiosidade geográfica enorme.

D. Pedro II, o pai dele, era um homem melancólico, sempre de luto… Imagino que a infância do futuro D. João V fosse passada num ambiente pesado.

É difícil dizer, porque há muito poucas fontes sobre isso. Na adolescência e juventude do D. Pedro, tens ideia típica do marialva, é quase a personagem do Delfim do Cardoso Pires em formato rei, uns séculos antes. Muitas mulheres, muito sexo. E, mesmo velho, ele estava em Alcântara, perto de onde é a LxFactory agora, fechava-se ali e as pessoas queixavam-se de que ele cansava tanto os touros que quando iam para a arena já estavam de rastos. Acho que amou, com muita culpa e muito amor, a cunhada, depois mulher, a mulher anterior de D. Afonso VI, e a filha que teve com ela. Aliás, assim que nasceu o primeiro filho com a segunda mulher (a mãe de D. João V), ele foi logo ter com a outra filha a Belém, como se precisasse de a compensar. Mas sim, D. Pedro vivia com um grande peso. Estar vestido de preto e não querer beber vinho é o contrário da adolescência e juventude que ele teve. Que culpa seria essa? Não sei até que ponto ele se sente culpado pelo que fez ao irmão [D. Afonso VI, que foi afastado do poder, degredado para a Terceira e por fim mantido preso em Sintra] e pela morte da mulher… O Paulo Drummond Braga, que fez um trabalho magnífico sobre as doenças dos reis de Portugal, descobriu que foi a mulher que lhe passou sífilis, mas não sei até que ponto é que ele não pensava que era o contrário… Seja como for, essa culpa passou, e ele tratou muito mal a segunda mulher, a mãe do D. João V, que era uma figura fascinante.

Dona Maria Sofia, uma alemã.

Há uma carta dela em que quase se divorcia do marido ao vivo, em que diz ‘não aceito ser destratada desta forma’. Essa carta é impressionante, porque tens uma mulher que responde num tom de segurança e de orgulho muito grande, com a plena consciência do seu papel, como mulher, como Rainha e como mãe. Se esta mulher tivesse vivido mais uns anos e tivesse acompanhado o filho, o que teria feito? Porque foi ela que o preparou. O D. João V, quando sobe ao poder, já não tem o pai, já não tem a mãe, já não tem a tia, Dona Catarina, Rainha de Inglaterra, mas sabe perfeitamente o que vai fazer. Isto não lhe caiu do nada, foram coisas que a mãe lhe inculcou. Portanto, essa presença da mãe é extremamente importante e é um dos pontos que eu quis vincar.

Embora a mãe morra muito cedo, quando ele tem nove anos. Ele sobe ao trono com 17 anos, solteiro e já sem esse apoio…

Sem ninguém. Consegues imaginar o que é subir ao trono aos 17 anos? Não há pai, não há mãe… não há uma figura mais velha – nem um primo afastado! A única figura de referência é o Duque de Cadaval, que tem um enorme poder, mas que tem muitas culpas no cartório. Uma das primeiras coisas que me interessou na biografia foi perceber como D. João V conseguiu metê-lo ao mesmo tempo no barco e ‘driblá-lo’. Esse equilíbrio foi muito difícil e é daí que nasce a primeira invenção joanina, que é o Cardeal da Cunha, um amigo dele, de uma família nobre. Para que é que servia o Cardeal da Cunha? A ideia com que eu fico é que D. João V precisava de um peso cardinalício próprio junto dos nobres para primeiro afastar o Cadaval e depois conseguir manter essa ligação.

Achei delicioso que uma das primeiras ações legislativas de Dom João V, um Rei que ficou conhecido pelo seu fausto, seja uma pragmática contra o luxo. Isto não é quase um paradoxo?

É, sem dúvida. Isso tem a ver com problemas económicos. Imitava-se de tal maneira o que se passava lá fora que as compras excessivas de coisas lá fora desequilibravam…

A balança comercial?

Esse é um problema constante. Quando temos o duplo casamento no Caia da D. Mariana Vitória com o D. José e da D. Bárbara com o D. Fernando, os nobres endividaram-se loucamente. Há muitos pontos importantes nessa pragmática. Aliás, vai haver outra logo no final do reinado e no princípio do reinado do D. José. Mas uma das coisas importantes para mim como biógrafo de D. João V sobre essa pragmática é a ideia de que o luxo é do Rei. Há muitas outras explicações históricas, mas essa é a questão principal.

Dizes no livro que «em 1710 o fim do rei parecia próximo». Curiosamente, vai ser um dos reinados mais longos da nossa história. O fim parecia próximo em termos físicos, por ele estar doente, ou em termos de as coisas não estarem a correr bem? Porque entretanto há uma guerra. Que guerra é essa que se está a passar aqui ao lado, e que também envolve França?

Esse é um dos períodos mais dramáticos e que me parece menos estudado. Temos aqui quatro coisas a acontecer ao mesmo tempo. Por um lado, temos a Guerra da Sucessão espanhola. Morreu o último Habsburgo, que deixou como herdeiro o Felipe, neto do Luís XIV. Portugal, ao início, apoia os franceses, mas a corte está dividida. O D. Pedro [II] tinha uma mulher, a mãe de D. João V, fortemente antifrancesa – não podemos esquecer que os franceses destruíram a terra da família dela e ela chega mesmo a dizer «os reis de França, que têm o privilégio de não ser gente». Houve depois uma alteração e Portugal acaba por colocar-se com a Inglaterra, com os holandeses e com Viena. A aliança com Inglaterra é mais ou menos lógica, com os outros dois é estranha: uma aliança com duas potências que não eram católicas. Temos cenários de guerra um pouco por toda a parte, mas sobretudo no norte da Europa. Na zona da Flandres houve imensas conquistas e reconquistas, e algumas em Itália e Portugal. Os nossos exércitos chegam a Madrid duas vezes. E tens milhares de soldados ingleses e holandeses aqui estacionados. Gente que não respeita a mesma religião e a quem é preciso dar de comer. O problema desta guerra principal foi a descoordenação, porque esta gente não tinha nada em comum, a não ser um ódio e uma vontade de que Luís XIV não ficasse a dominar estes dois grandes pontos. Segundo problema: tens um Rei jovem, com uma guerra no meio do seu território, e sem grande hipótese de decidir. Não tem um exército capaz. O pai era um homem militar, ele não tem essa noção…

Não tem essa formação. Nem vocação, se calhar.

Há um irmão [D. Francisco, duque de Beja] que sai muito mais ao pai, que quer aparecer e chegar-se à frente. Mas ele não quer dar ao irmão essa hipótese. Portanto, é um Rei sem poder, que tem o território devastado e que está nas mãos dos soldados aliados. Essa é outra coisa complicada: não é só a falta de soldados, é o pagamento necessário, é a comida que tem que chegar. Esperou-se muito – isso vê-se nas cartas do embaixador Cunha Brochado, um escritor delicioso – que o célebre príncipe Eugénio viesse para Portugal resolver a guerra, e isso não aconteceu. Terceiro problema: há uma guerra dentro de portas, dentro do palácio. O Cadaval quer sempre manter o poder, é o mordomo da Rainha. A nova Rainha chega, saberia certamente que ele tinha tido problemas com a sogra, e vê o D. João instalado com a D. Filipa de Noronha. Não sei em que ponto podemos descrever essa instalação… mas ela é aia da Rainha e vai ter uma criança, portanto o caso corria. O D. João fez promessas de casamento a esta Filipa de Noronha – ou seja, a Rainha não tem espaço. E quarto ponto: tens uma guerra interna com o irmão. O irmão quer aparecer, acha que tem que ser ele o Rei. É um tipo forte – as descrições são todas de um homem bonito, mas violento. Um contemporâneo francês diz que ele tinha uns dentes magníficos, mas que vivia com ferocidade. É quase a imagem de uma bela fera. E ao mesmo tempo, como falámos antes, não há chefe de família, os irmãos pequenos crescem desgovernados. Há todas estas coisas a acontecer e ele fica doente. O D. João V fica muitas vezes doente depois de grandes períodos de stresse, o que mostra uma pessoa afetiva e aberta, que é o contrário da imagem que lhe pintaram sempre. Ele esteve realmente doente e houve todo este peso – deve ter-se sentido completamente impotente. Ao mesmo tempo, gastava-se. Nisso era igual ao pai, andava pela noite, dormia com várias mulheres, presumimos com prostitutas. Nem dormia no palácio. Portanto, vemos aqui uma guerra em vários planos, e ele fisicamente muito perto do fim. E o D. Francisco tentou ao máximo puxar por esse desequilíbrio. Numa situação destas, se a D. Maria Ana decide ‘eu não aceito isto, eu vou voltar’, teria sido um caso gravíssimo. Ela aceita paciente, caridosamente, a sua situação, mas se não o tivesse feito, se tivesse feito como a mãe do D. João V, que disse ‘eu vou bater a porta, vou-me embora’, a situação poderia ter sido dramática.

Tudo isso talvez ajude a explicar a descrição que é feita por um espião italiano chamado Viganego. Ele faz um retrato terrível de Lisboa, diz que não há autoridade, que tudo se faz por dinheiro, que os soldados roubam e matam impunemente. Parece uma terra sem rei nem roque.

Sim, isso tem muito a ver com essa presença de uma série de soldados estrangeiros. O professor Ferrand de Almeida estudou muito essa altura e há imensas descrições de revoltas – imensas – neste período. E, se sobraram descrições de algumas, elas terão sido muito mais.

Será apenas a ponta do icebergue…

Esse desgoverno tem a ver com a falta de autoridade do poder central. Mas que mecanismos poderia ter o D. João V quando tem guerra dentro de portas e uma incapacidade de gerir essa situação? É muito difícil. Mas não há nenhuma ideia de que as pessoas não gostassem do Rei. Pelo contrário, logo desde o início as pessoas amam o seu jovem Rei.

Essa situação difícil leva-me a pensar em toda esta devoção, que chega a parecer excessiva. Aliás, uma das primeiras coisas que ele faz são obras na Capela Real. Toda esta religiosidade do Rei não seria também uma forma de procurar refúgio?

Esse é um ponto muito interessante. A perda da Capela Real é um drama porque é o edifício que D. João V mais trabalhou. As descrições das obras são infinitas, desde os primeiros anos do reinado, antes de a D. Maria Ana chegar. E ao longo do tempo a Patriarcal [estatuto especial que D. João V obteve para a sua capela] levou obras, ele mudou tudo, mudou a estrutura, enriqueceu-a… Acho que esta questão religiosa se vê por vários vetores. Vou começar pelos mais novos. O primeiro, a mãe. A mãe organizou várias ações de graças, cruzando a cidade, juntando as várias paróquias e ordens religiosas. Ela associou sempre isso a unir o povo num momento de gratidão divina. Isso marcou o D. João V absolutamente. Não tenho dúvidas nenhumas de que esse é um modelo materno que ele replica, porque o vivenciou e porque viu a religião da mãe. A mãe era uma santa viva que ia buscar os pobres e que lhes dava de comer. E essas manifestações majestáticas do poder divino que ela organizava como ação de graças, não tenho dúvida de que ele as mantém por devoção materna, talvez até por saudade materna. Segundo ponto: o professor Franco, no prefácio, fala no mito davídico. Não tenho dúvida, também, de que ele tinha momentos de crises místicas. Era um homem que pensou muitas vezes que gostava de ser monge, e talvez se visse como tal. No seu maravilhoso livro sobre Mafra, o António Filipe Pimentel defende a teoria de que parte de Mafra era para fazer o seu lugar de enterro, e que a peça que faltava ao convento era o corpo do D. João V, que queria ser sepultado como um pobre monge. Essa ideia do monge está presente na vontade de fazer o mosteiro, de ficar lá dentro quando morresse. Ele ia para a Arrábida isolar-se por muito tempo, um homem que gostava tanto de luxo ia dormir num cantinho… Nas cartas finais ao Cardeal da Mota, ele dizia que ia lá para cima para a tribuna na Patriarcal e ficava a pensar e a ver os pobres rezar. Ele tinha essa necessidade de solidão e acho que sentia conforto em Deus. Quarto ponto: acho que D. João V não sentia culpa. Essa é uma coisa curiosa. Ele sentia que tinha uma espécie de crédito especial ou de proteção divina. E sentia que tinha de se sintonizar com o divino. Há uma discussão com o Cardeal da Mota sobre o dia em que saem as nomeações dos secretários de Estado. Ele diz: ‘Tem que ser no Dia de Santa Rita, porque ela é que faz milagres’. É um homem que se sintoniza com os mistérios religiosos de uma maneira muito direta. Portanto, esse aspeto religioso vai muito para além da fácil redução de que o D. João V era um beatão que fazia igrejas e para quem a religião era uma coisa completamente superficial. Não era, era intrínseca.

Custa-nos um pouco conciliar esse aspeto da piedade com o gosto do Rei pelas mulheres e pelos prazeres carnais. São dois aspetos que à primeira vista nos parecem contraditórios, mas que acabam por se fundir na ligação com a Madre Paula.

Ele herda isso do pai, do tio e até do avô. Os três tiveram imensas relações extraconjugais. Tenho a ideia de que o século XVIII é muito influenciado pelo Luís XIV – e isto é mais importante do que parece –, que, apesar de tudo o que fez no início da vida, faz o segundo casamento, com Madame de Maintenon, por amor e torna-se um homem fiel. A corte fazia o que queria, o irmão dormia com tudo o que mexia… Essa ideia de que afinal o Rei é fiel à mulher mantém-se curiosamente no neto, Filipe V, Rei de Espanha. Tinha, segundo consta, uma líbido extraordinária, mas só queria dormir com a mulher. Em relação ao D. João V e à Madre Paula, há uma coisa que eu não ousei colocar na biografia. O freiratismo não é um fenómeno exclusivamente português – tens em Espanha los amantes de monjas. Mas é sobretudo português no sentido em que se torna uma moda ir visitar as freiras aos conventos, e ter com elas uma relação que pode ser mais ou menos idealizada, mas que também é sexual, porque há descrições com o D. João V, e não só, de relações sexuais entre as freiras e os nobres.

E que coisa foi essa que não ousaste colocar na biografia?

Há uma espécie de ‘domjoãoquintismo’, que é um donjuanismo freirático. Tal como há um ‘luíscatorzismo’ – de projeção do poder real, etc. –, tens um freiratismo típico do D. João V. Ele expõe a sua relação com a freira como nenhum dos seus antecessores tinha feito. Ao mesmo tempo havia um Quinto Império associado a D. João V e que é logo pronunciado mal ele nasce. Ele sabe que há uma ideia mística à volta disto. E repara: os filhos bastardos dele com as freiras vão para a vida clerical, um deles vai ser inquisidor e o outro vai ser arcebispo de Braga. De certa maneira é como se ele achasse – e esta é a parte que não ousei pôr – que esta relação que tinha com uma freira gerava uma espécie de segunda dinastia religiosa, onde o sangue real era misturado com as eleitas de Cristo para gerar uma espécie de prole sagrada. Esta é uma ideia um pouco…

Isso é a antítese do bastardo.

É isso mesmo. Se quiseres, é uma bastardia sacralizada, que é uma ideia bastante perturbadora, mas que é uma ideia bastante ‘D. João V’. [risos] Os filhos que teve com as freiras são os únicos que ele reconhece, praticamente. Havia outros que nunca reconheceu.

Como é que este período mais tumultuoso do início do reinado termina e as coisas entram, digamos assim, em velocidade de cruzeiro?

Nesses anos complicados, entre [17]09, 10, 11, 12, até se perceber que a guerra vai acabar, a pobre Rainha não teve espaço. Há uma brilhante investigadora italiana em Portugal, a Giuseppina Raggi, que viu que a dona Maria Ana começou a celebrar os momentos importantes na corte através da ópera. Isto para dizer que a Rainha encontrou o seu espaço dentro da corte, projetando o poder real. E depois há um momento, quando começa a haver guerra e já não há a Filipa de Noronha, em que o Rei percebe que através da Rainha pode duplicar o seu poder – e não sei se houve na história de Portugal um casal mais bem preparado e mais unido em termos da consciência do poder real. Ela sofreu horrores, mas os dois funcionaram como uma dupla imbatível nesse sentido. Tanto que a Rainha era muito temida pelos franceses e pela Rainha de Espanha. Quando é que a situação se altera? Altera-se precisamente quando a Rainha, depois desse período todo, diz ao Rei – e isso é relatado pelos biógrafos contemporâneos – ‘é altura de tomares o poder nas mãos, é altura de começares a decidir’. Até aí, tens uma coincidência nas fontes estrangeiras e nacionais de que o Rei sentia pouca apetência pelo poder – claro, ele não podia fazer muita coisa. A partir dessa altura, o Rei toma o poder em mãos. E ela ajuda nisso.

(continua na próxima semana)