A poesia também pode ser feita das coisas mais simples

A primeira impressão ao lermos alguns escritos de Adília Lopes pode ser de que estamos perante uma redação da quarta classe.

A primeira vez que ouvi falar de Adília Lopes (nom de plume de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira), foi por volta do ano 1999 ou 2000, na esplanada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, quando uma amiga me mostrou um livro com uns versos estranhos:

«Marianna que não gosta
de chantilly
passa a gostar de duchesses
a partir do momento
em que
chantilly lhe soa a Chamilly»

‘Mas que disparate é este?’, pensei. ‘Têm o atrevimento de chamar a isto poesia?’ Senti uma espécie de embirração natural e imediata pela autora, formando dela a imagem de uma pessoa mal-educada e irritante.

Só muito mais tarde vim a saber que o tal livro era uma espécie de variação sobre um clássico das letras de 1669, Cartas Portuguesas, atribuído a Mariana Alcoforado, uma freira de Beja (de onde por coincidência também é natural essa amiga da faculdade) que se teria apaixonado perdidamente por um oficial francês, de seu nome Chamilly, a quem escreveu essas cinco cartas de amor não correspondido.

Devo dizer que a impressão negativa sobre a autora se manteve até descobrir Caras Baratas, um título que volta e meia ainda me suscita um sorriso. Aos poucos, a minha opinião sobre Adília foi-se modificando. A rejeição inicial deu lugar à curiosidade.

A primeira impressão ao lermos alguns escritos de Adília pode ser de que estamos perante uma redação da quarta classe. A mesma simplicidade e a mesma candura, a construção rudimentar. Nada de poses para ficar bem na fotografia, nem sombra de receio de parecer ridícula.

Por sinal, é ela própria que recorda em Comprimidos, de 2015. «A literatura começou para mim aos 10 anos ao ler um texto de Erico Veríssimo que vinha no livro da minha 4.ª classe:_Clarissa a observar um carreiro de formigas. Devo a literatura a Erico Veríssimo e à Professora Maria Inácia e às formigas».

A obra de Adília vai-se desenrolando num ambiente familiar, doméstico – caseiro, mesmo –, com as minudências e os objetos mais corriqueiros do dia-a-dia a assumirem o seu lugar na ordem do mundo.

Depois há versos provocatórios e desestabilizadores, como_«um dia/ tão bonito/ e eu/ não fornico».

Mas nem tudo tem graça. A candura infantil, desbocada, pode assumir uma feição mais patética. Em particular quando se debruça sobre a doença mental ou a aparência física. Ou ambas, como neste caso: «Tomo Risperidona. A Risperidona é um remédio ríspido. Torna-me gorda e lenta. De corpo e de espírito».

Pelo meio, pode sempre aparecer uma citação da Bíblia, uma consideração mais metafísica ou uma referência erudita que nos vem baralhar as contas.

E, por falar em referências, muitos poemas, pelo seu minimalismo, fazem lembrar haikus. Apresentam o mesmo despojamento, as mesmas linhas penduradas, o mesmo lado um pouco insólito – quando não insolente. Este ‘Poema Chinês’ é ainda mais curto do que os célebres congéneres japoneses de 17 sílabas:

«Chá preto
arroz branco»
.

Só isto, nem mais uma linha.

Será esta uma poesia fácil? É verdade que lê-se bem, não tem palavras arrevesadas nem grandes teorias. De uma forma geral fala de coisas prosaicas, numa linguagem direta e descomplicada. Pode ser fácil gostar dela. Mas também é fácil odiá-la, como eu próprio pude comprovar. Agora que a autora nos deixou, apetece-me dizer, imitando aquele registo que se tornou a sua marca d’água: Adília Lopes morreu e eu tive pena.