Uma Europa do Atlântico aos urais?

A Rússia não estava nada interessada em ser parte da Europa. Queria manter-se de mãos livres, como uma potência imperialista. A invasão da Ucrânia foi uma boa prova disso.

Em conversa com um amigo, este mostrava-se muito preocupado com as consequências da guerra na Ucrânia, não apenas pelos seus efeitos imediatos, mas pela repercussão que vai ter nas relações futuras entre a Europa Ocidental e a Rússia. Para ele, a Europa deveria esforçar-se por manter uma boa relação com a Rússia, pois esta faz parte integrante da cultura europeia.

O meu amigo sonha ainda com uma ‘Europa do Atlântico aos Urais’, e esta guerra desfaz ou atrasa esse sonho.

Curiosamente, poucos dias depois deste diálogo, encontrei outro amigo que não via há muito e que, depois de uns minutos de conversa banal, me falou da necessidade de um encontro entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa, dizendo que «a Europa sem a Rússia não faz sentido».

E, por maior coincidência ainda, nessa mesma noite ouvi na RTP uma entrevista a Durão Barroso, onde a dada altura ele aflorava a existência de uma cultura europeia englobando a Rússia, que produziu nomes como Tolstoi, Dostoievski e Tchekov na literatura, Tchaikovsky, Stravinsky e Prokofiev na música, Kandinsky, Malevitch e Chagall na pintura.

São nomes enormes, não só da cultura russa, mas da cultura europeia – que todos os europeus conhecem, compreendem e celebram. É a tal ‘Europa do Atlântico aos Urais’.

Mas se isto é assim na cultura, no plano social e político a evolução foi muito diferente. Enquanto na Europa ocidental – e sobretudo em países como a Bélgica, a Holanda ou a Inglaterra – uma burguesia empreendedora transformou por dentro a sociedade feudal, instituindo o liberalismo económico e impondo a democracia, a Rússia permaneceu sempre um estado feudal.

Ao contrário do que sucedeu na Europa, na Rússia não surgiram instituições burguesas que permitissem a evolução gradual para a democracia. O czarismo foi derrubado violentamente para construir outra ditadura – a ditadura comunista. Foi a substituição de um regime despótico por outro. Que, para se defender da fuga dos seus cidadãos, teve de construir uma ‘cortina de ferro’.

Portanto, se no domínio da cultura podemos falar de uma ‘cultura europeia’ que compreende a Rússia, no plano social e político não.

E essa oposição permanece até hoje. Enquanto na totalidade dos países europeus existem democracias, a Rússia tem um regime autocrático, onde Putin se apresenta como uma versão atualizada do czar e os oligarcas são a versão moderna dos senhores feudais, que até têm exércitos privados (como acontecia com Prigozhin).

Perante isto, é impossível dizer que a Europa ‘marginalizou’ a Rússia. A Rússia é que se marginalizou a si própria. Talvez pela sua enorme extensão, precisa de ter um Estado forte, centralizado e implacável nos seus processos.

Diga-se que, depois da implosão da URSS, o tal sonho de uma Rússia europeia existiu em responsáveis do lado de cá e do lado de lá da velha cortina de ferro.

Acredito que Gorbatchov e outros adeptos da Perestroika estivessem interessados nisso. E na Europa ocidental também houve não só quem acreditasse nessa ideia mas estendesse a mão à Rússia. Vários dirigentes ocidentais, a começar por Merkel, admitiram que ia iniciar-se uma nova era nas relações entre a Rússia e a Europa. Que, finalmente, as duas iriam ser uma só. Construiu-se e pôs-se a funcionar o Nord Stream 1, e depois surgiu o Nord Stream 2, que representavam uma grande manifestação de confiança no regime russo – pois, na prática, tornavam o Ocidente dependente da energia da Rússia. Se os russos fechassem a torneira, a Europa pararia. Que melhor manifestação de confiança poderia haver? E chegou mesmo a falar-se da entrada da Rússia para a União Europeia e até – imagine-se – da sua entrada na NATO!

Mas a Rússia não estava interessada nisso. Não queria ser parte da Europa. Queria manter-se de mãos livres, como uma potência imperialista. Como o prova a invasão da Ucrânia.

Não foi a Europa que repeliu a Rússia – foi a Rússia que se excluiu, reconstituindo uma nova cortina de ferro. Putin não se cansa de dizer que não está em guerra com a Ucrânia e que o conflito é «entre a Rússia e o Ocidente».

Àqueles que ainda acreditam numa ‘Europa do Atlântico aos Urais’, eu aconselho que meditem nos últimos séculos da História. A História da Rússia do tempo dos czares, do tempo do comunismo, deste tempo de Putin, é a história de um país fechado sobre si próprio e cioso das suas fronteiras imperiais – que ainda tenta reconstituir –, e nada interessado numa fusão com a Europa Ocidental. Cujas instituições e valores, aliás, repudia.