O último dos moicanos

Devemos ter consciência de que são os nossos hábitos que moldam as cidades. Podemos não saber, mas temos o que queremos…

Há mais de 40 anos, na República Democrática Alemã onde residi durante alguns meses por razões de saúde, tentei comprar um gorro que avistara, em pleno nevão, na montra de uma chapelaria. O funcionário não o pôde vender porque era o único artigo que lhe restava e, sem ele, a loja do Estado que a Câmara de Rostock insistia em manter deixaria de existir enquanto última chapelaria da cidade.
Pode ser que, no futuro, também entre nós alguém se lembre de manter lojas abertas entregando-lhes dinheiros públicos para fingirem que funcionam. Isto porque o encerramento do comércio tradicional, em particular de livrarias, causa sempre justificada comoção. O papel destes estabelecimentos comerciais não se cinge à atividade económica: há o fator identitário e a convivialidade que se perdem, sem substitutos óbvios. Este outono das cidades, em que os pontos de encontro e os hábitos, usos e costumes que lhes estão associados vão caindo como folhas mortas, tem causas profundas.
Reclama-se do poder político e clama-se em defesa da identidade sempre que uma livraria fecha as portas, mesmo que, envergonhadamente, quem se queixa encomende livros na Wook e use o Revolut para adquirir inutilidades na Temu. Aliás, os que defendem políticas liberais, como a legalização desregrada dos TVDE, e não se insurgem contra os licenciamentos automáticos de espaços comerciais são os que, depois, reclamam das suas consequências.
A propósito desses bons velhos lugares que vão desaparecendo, onde ouvíamos os outros e em que nos tratávamos pelo nome, Hélder Pacheco escreveu que há «franjas da classe média que, à medida que a realidade se transforma em inevitável perda de referências que pareciam estáveis e consolidadas, vai cultivando o revivalismo (…) como espécie de culto em tempos de perda.»
Note-se que há atividades e estabelecimentos que desapareceram do nosso quotidiano: os clubes de vídeo onde alugávamos filmes (enquanto chorávamos o fecho dos cinemas), que depois se extinguiram quando os filmes nos passaram a entrar em casa pela Netflix; as discotecas onde comprávamos discos e CD, que trocámos pelo Spotify; as lojas de vestuário e de eletrodomésticos, que foram substituídas pelas plataformas online… Alguém ignora que, ao encomendar uma refeição que lhe chega por estafeta, está a esvaziar o restaurante da esquina?
Livrarias como a Latina não fecham a porta pela rendas caras ou por serem negócios de pequena dimensão: muitas faziam parte de grandes grupos. Nem por falta de apoio público, porque estariam protegidas, se quisessem, como estabelecimentos de tradição. Falecem por obsolescência: os clientes mudaram de hábitos e compram online ou no hipermercado. O caso exemplar da Livraria Lello não é replicável; e, se fosse, não faltaria quem logo apontasse que só serve os turistas.
Não é fácil travar a transformação urbana que a pandemia acelerou. Contudo, devemos ter consciência de que são os nossos hábitos que moldam as cidades. Podemos não saber, mas temos o que queremos. Até que um dia já não teremos o que achávamos que queríamos…
Volto a Hélder Pacheco: «Perdeu-se, até para os não frequentadores críticos e adversários, (…) o movimento das entradas e saídas e do ajuntamento dos habituais, crónicos e infalíveis.» Nesta sociedade ditada pelo consumo, as escolhas são livres e a soma dessas triagens individuais determina o nosso destino coletivo. Queremos lojas de rua, livrarias, tascas, papelarias, talhos e mercearias, confeitarias e cafés, floristas e padarias? Ainda que sejam menos cómodas e mais caras, temos de pagar o fator imaterial.
Não sei que futuro nos espera, mas serei o último dos moicanos: continuarei a não fazer compras online.