Entre conversas de café e murmúrios entre vizinhos, um consenso começou a formar-se entre a população da pequena localidade de Vila Maior, em Santa Maria da Feira: o desejo de voltar a ser uma freguesia independente. Foi assim que nasceu o ‘Movimento Cívico pela Reposição da Freguesia de Vila Maior’, fundado em 2013, ano em que a ‘lei Relvas’ foi aprovada e veio reduzir drasticamente o número de freguesias em Portugal, de 4.259 para 3.091.
Gervásio Freitas, 54 anos, trabalhador no comando de circulação de comboios e residente em Vila Maior, é um dos fundadores deste movimento que luta pela autonomia. Na sua opinião, a localidade perdeu «valências» desde que integrou a União de Freguesias de Canedo e Vale.
«Antes tínhamos tudo aqui na nossa freguesia, desde tratores a cantoneiros. Agora foi tudo para Canedo», desabafa Gervásio. «Toda a gente aqui concorda que perdemos valências e querem a reposição da freguesia».
Um desejo que pode muito em breve tornar-se realidade. Vila Maior é uma das 303 freguesias que podem ser repostas, caso o projeto de lei para a criação e desagregação de freguesias seja votado favoravelmente hoje em plenário da Assembleia da República.
Assim como acontece noutras freguesias de pequena dimensão, a população de Vila Maior, com pouco mais de mil habitantes, anseia pela autonomia e sente que foi abandonada. «Canedo tem seis mil e tal habitantes. Claro que quem ganha as eleições olha mais pelos interesses dos seis mil, até para conquistarem votos», critica Gervásio.
E acrescenta: «Muitos dos jovens de Vila Maior vão viver para Canedo, porque lá é que há tudo. Pequenas freguesias como a nossa, ao estarem agregadas, perdem cada vez mais população, porque fica tudo centralizado na maior freguesia».
‘Sentimos falta de ter uma junta própria’
Vila Maior não é caso único. Santa Maria da Feira é um dos concelhos que vão ter um maior número de desagregações: no total, são quatro uniões que darão lugar a 11 freguesias. É o exemplo da União de Freguesias de Caldas de S. Jorge e Pigeiros, que 12 anos depois volta a separar-se.
Na pequena localidade de Pigeiros, com apenas mil habitantes, o povo critica a negligência que tem sido dada à freguesia desde que deixou de ser autónoma. «Cada vez temos menos apoios. Como a nossa freguesia é mais pequena do que Caldas de S. Jorge – que tem cerca de três mil habitantes -, a nível de Assembleia de Freguesia pouco valemos», critica Ana Paula Rodrigues, residente de Pigeiros há 49 anos.
«Ficando desagregados e independentes seremos só nós a decidir pelo melhor. É quem vive em Pigeiros a decidir por Pigeiros», argumenta a oficial de justiça.
Por enquanto, a sede da Junta de Freguesia está instalada em Caldas de São Jorge, o que também tem gerado mal-estar. «Há falta de convivência com as pessoas que estão na junta porque estão mais distantes e a comunicação é mais difícil do que antes. Sentimo-nos impotentes».
Também Manuel Vaz, reformado e residente em Pigeiros, recorda os «bons tempos» em que tinham «junta própria».
« Sentimos bem a falta de ter uma junta de freguesia aqui em Pigeiros. Agora está tudo ao desmazelo, seja a nível de limpeza de valetas, estradas mal tratadas, obras inacabadas… Veja-se o exemplo do Parque do Calvário, completamente ao abandono».
‘A agregação foi imposta’
De norte a sul, o descontentamento das populações locais levou ao nascimento de cada vez mais movimentos cívicos com o objetivo de exigir a independência das freguesias.
Em Leiria, a professora e carreirense Maria Ferreira, de 52 anos, é um dos elementos Movimento para a desagregação da freguesia da Carreira da União das Freguesias de Monte Redondo e Carreira.
«A agregação foi imposta e as pessoas não foram ouvidas. Comecei a constatar que a vontade [de haver a desagregação] era geral», explica Maria. «Há uma identidade, algo que nos define e diferencia, que não é compatível com uma ‘gestão’ feita por alguém de fora».
Mais uma freguesia pequena que alega ter visto os seus interesses deixados para trás em função da junção a freguesias maiores. «A Carreira tem cerca de 900 eleitores e Monte Redondo tem o quádruplo. Um carreirense nunca teria hipótese de ser presidente», enfatiza. «A desagregação deve-se, em parte, à falta de proximidade com o executivo. Com uma população relativamente envelhecida, a proximidade, o facto dos elementos do executivo serem da terra, dá mais ‘segurança’ às pessoas. Essa mesma proximidade faz com que o executivo, que é da terra, comungue e experiente os problemas que afetam a população e tente por tudo resolvê-los».
‘Já não há presidência de proximidade’
A falta de uma política de proximidade tem sido, aliás, uma das principais motivações de quem defende o regresso ao modelo de freguesias anterior à lei de 2013. E é quem viveu as duas fases que melhor as saberá comparar. Jorge Mendes tem 75 anos mas já conhece São Mamede de Infesta desde os três anos. Enquanto residente, testemunhou o momento em que a localidade passou a fazer parte da União de Freguesias de São Mamede de Infesta e Senhora da Hora. Um homem da terra que afirma ser «defensor da separação desde a primeira hora».
«As coisas pioraram principalmente porque o presidente agora tem de andar entre as duas freguesias e nota-se um certo abandono em relação a São Mamede. Por muito que tentem dizer que continua a mesma coisa, é completamente diferente. Antigamente tínhamos um presidente de proximidade e agora não», argumenta. «As pessoas criticam o estado das estradas e dos espaços públicos que têm sido negligenciados e têm razão»
É o caso de José Silva, que também vive em São Mamede há vários anos, mas garante nunca ter visto «esta bela cidade como está: praticamente no esquecimento».
«São obras que não começam, outras que não acabam, estradas principais numa miséria, os passeios públicos com perigo à vista, sujidade em todo o lado. Esquecem-se que vivem aqui muitas pessoas idosas e com problemas de mobilidade. Isto ficou tudo assim desde que formaram a união de freguesias», denuncia.
‘Uma superfreguesia impossível de gerir’
É assim que Helena Coelho, coordenadora da comissão que elaborou as propostas de desagregação das freguesias de Queluz e Belas, descreve esta união criada em 2013.
Quase dez anos depois, quando se abriu a possibilidade de desagregar as freguesias unidas em 2013, caso tivesse ocorrido erro manifesto e excecional que cause prejuízo às populações, a União de Queluz e Belas surgiu como um «exemplo flagrante».
«Trata-se de uma superfreguesia impossível de gerir, com uma área de cerca de 25 km2, superior à área do município da Amadora, e tem, desde o primeiro momento, mais de 50.000 habitantes», explica a também líder da bancada do PSD na Assembleia de Freguesia.
De acordo com um estudo realizado pela Comissão da Assembleia de Freguesia da União das Freguesias de Queluz e Belas, a despesa com serviços administrativos e administração autárquica subiu drasticamente, comparativamente ao período anterior à agregação. No caso dos encargos com órgãos de administração autárquica subiu 85%, o que parece deitar por terra os argumentos de redução de custos com a união de freguesias.
«Em 2012, nenhum partido em nenhuma das antigas freguesias foi favorável à agregação de Queluz e Belas. A Assembleia Municipal e a Câmara Municipal de Sintra também não foram favoráveis à agregação nos moldes em que esta ocorreu. No entanto, a opinião dos socialistas mudou nestes últimos dez anos», critica Helena Coelho. «As propostas de desagregação foram aprovadas com os votos a favor de todos os partidos com assento na assembleia de freguesia de Queluz e Belas, à exceção do Partido Socialista (que preside atualmente à Junta de Freguesia)».
Separação cria mais 168 presidentes
Caso seja aprovada a proposta de reversão de freguesias agregadas pela ‘Lei Relvas’, votada hoje no Parlamento, serão separadas 135 freguesias dando origem a 303 novas autarquias locais. Esta desagregação abrirá lugar para 168 presidentes de junta, cujo salário varia entre 295€, em não permanência, e 2.048€, em exclusividade.
O número de novos presidentes resulta da diferença entre o número de autarquias a restaurar (303) e as extintas (135).
De qualquer forma, a extinção de freguesias e a nova reconfiguração só será efetivada após as eleições autárquicas, em setembro ou outubro 2025. As uniões de freguesia que forem desagregadas terão comissões de extinção para separar o património e distribuir os trabalhadores pelas novas juntas e comissões instaladoras.