O governo da academia

A proposta conduzirá a um fechamento da instituição sobre si própria, contrário ao espírito que, por exemplo, levou a proibir o inbreeding

O RJIES – Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior – estabelece o modelo de governo das universidades, politécnicos e das respetivas faculdades e escolas. Um tema arcano, que interessa sobretudo à comunidade académica, mas que voltou à atualidade quando há algumas semanas o ministro Fernando Alexandre apresentou uma proposta de revisão do regime que vigora desde 2007.
E é nesta lei de 2007 – introduzida por José Mariano Gago e Manuel Heitor – que convém começar. Ela representou uma rutura profunda com o modelo de governo em vigor desde o 25 de Abril, a chamada ‘gestão democrática’, segundo o qual todos os ‘corpos’ estavam representados na gestão e as principais decisões eram tomadas por votações em diferentes assembleias. As universidades são instituições especiais, onde professores e investigadores não são funcionários do ministro, reitor ou diretor. Diz-se, por isso, que gerir a academia é como que pastorear um bando de gatos. Também por isso, conceitos e instrumentos comuns no mundo das empresas – planeamento estratégico, orçamentos plurianuais, gestão por objetivos, coordenação de atividades, gestão da marca, etc. etc. – são raros na academia. Dada dificuldade em tomar decisões, as instituições académicas tendem a ficar presas em querelas intestinas, movendo-se apenas ao sabor dos humores e prestígio deste ou daquele indivíduo. E têm muita dificuldade em atuar como um todo, num esforço concertado para desempenhar uma qualquer missão coletiva. O RJIES de Mariano Gago procurou o equilíbrio entre a liberdade intrínseca e a necessidade de racionalizar e muscular os processos de decisão. Fê-lo por duas vias fundamentais: conferindo aos dirigentes máximos (reitor, presidente ou diretor) um real poder executivo e decisório; e tornando esses dirigentes accountable perante um órgão colegial restrito (‘Conselho’), representando os diferentes stakeholders (incluindo a sociedade fora da academia), que elege e monitora o executivo unipessoal. Tendo sido diretor da Nova SBE sob ambos os modelos, posso testemunhar que a extraordinária evolução desta escola nos últimos 15 anos dificilmente teria acontecido em ‘gestão democrática’, isto é, sem executivos fortes suportado por ‘Conselhos’ esclarecidos.
O Governo decidiu promover a revisão do RJIES. Destaco duas propostas de alteração: o retorno à eleição direta dos reitores das universidades e dos diretores de faculdades; e a proibição de recrutamento como professor, por um período três anos após o doutoramento, dos próprios doutorados, (ou seja, a proibição do chamado inbreeding). O inbreding é um cancro nas instituições pois conduz à perpetuação de relações de poder feudais (’mestre/aprendiz’) e ao seu fechamento relativamente a novas influências exteriores. É uma proposta muito positiva e que irá abanar toda a academia. Em contrapartida, o retorno à eleição direta dos reitores e diretores é um retrocesso incompreensível. Desde logo, porque desincentiva a discussão e escolha serenas de projetos estratégicos alternativos, privilegiando, ao invés, as campanhas eleitorais comicieiras, com promessas miríficas a este e aquele corpo de eleitores. Depois, porque desassocia o poder executivo do órgão colegial a que aquele responde, criando disfuncionalidades semelhantes às dos sistemas políticos em que o primeiro-ministro e o parlamento são ambos eleitos direta e separadamente. Finalmente, porque impossibilita a adoção de modelos de seleção comuns nas melhores universidades mundiais como seja, por exemplo, instituir search committees que organizam processos de pesquisa dos candidatos, nacionais e internacionais, potencialmente mais adequados. Dificilmente alguém de fora da instituição ou, a fortiori, do país, se sujeitará ao processo eleitoral proposto. A proposta conduzirá, assim, a um fechamento da instituição sobre si própria, contrário ao espírito que, por exemplo, levou a proibir o inbreeding.
Deixo para o fim comentários sobre o modelo e a oportunidade. O sistema de ensino superior nacional acomoda instituições com culturas muito diferentes. Por isso entendo mal o nível de detalhe e a minúcia microscópica da lei proposta, e que um ministro de pendor liberal não proponha uma convivência mais ampla e livre de diferentes modelos de governo concorrentes. Entendo também mal que um governo com uma maioria parlamentar muito ténue queira levar a cabo uma reforma desta importância. É verdadeiramente abrir uma caixa de Pandora de onde pode sair um produto final bem pior do que o atual RJIES. Apostaria, aliás, que a principal medida positiva – o fim do inbreeding – dificilmente será aprovada e que, pelo contrário, serão aprovadas alterações no sentido do retorno à ‘gestão democrática’. A prudência aconselharia a que nesta fase se fizesse apenas um estudo profundo do que seria um novo modelo de governo da academia, esperando por tempos parlamentarmente mais pro