Ananás, só de lata

Quem imaginaria que, um dia, o abacaxi fresco importado seria mais barato do que a lusa pera-rocha?

Há muitos anos, num restaurante chinês de Coimbra, ao pedirmos a sobremesa, a funcionária dizia sempre: ‘ananás, só di lata’. A frase ficou e ainda hoje nos faz sorrir. Em Portugal, até aos anos 1990, quando as grandes superfícies comerciais se popularizaram, o ananás consumido era principalmente de lata. Antes disso, ananás fresco era praticamente só no Natal. Em dezembro, surgiam na baixa da cidade (que atualmente mete dó!) vendedores ambulantes com ananases dos Açores. Quem imaginaria que, um dia, o abacaxi fresco importado seria mais barato do que a lusa pera-rocha?
Embora técnicas de conservação de alimentos como secagem, salga, fumagem e confitagem sejam milenares, o enlatamento surgiu apenas no início do século XIX. Em 1810, o comerciante e inventor inglês Peter Durand patenteou um método de conservação em recipientes de diversos materiais. A ideia fora desenvolvida desde 1795 pelo confeiteiro francês Nicolas Appert, que utilizou frascos de vidro rolhados com cortiça, imersos em água fervente. Appert receberia 12 000 francos do governo francês pelo seu método, conhecido como apertização, que descreveu em A Arte de Conservar Durante Vários Anos Todas as Substâncias Animais e Vegetais (1810).
Isto ocorreu cerca de meio século antes de Louis Pasteur, outro francês, inaugurar a microbiologia moderna, e, consequentemente, muito antes de se conhecer o conceito de esterilização e o papel dos microrganismos na decomposição dos alimentos. A sua técnica de pasteurização, embora similar à apertização, distingue-se por utilizar temperaturas mais baixas para prolongar a vida útil dos alimentos, especialmente líquidos como leite e sumos, mantendo as suas características sensoriais. A apertização, com temperaturas mais elevadas, assegura a esterilidade necessária para a conservação a longo prazo sem refrigeração.
Em 1812, Durand vendeu a patente a John Hall, um engenheiro inglês, que, em parceria com Bryan Donkin, seu aprendiz, abriu em Londres a primeira fábrica de conservas em latas de ferro estanhado. O Almirantado fez logo grandes encomendas. Pela sua durabilidade e pela facilidade de armazenamento a bordo, os enlatados depressa entraram na dieta das tripulações. No entanto, ficariam para sempre associados a uma malfadada expedição da Marinha Real Britânica ao Ártico Canadiano, liderada por Sir John Franklin.
Com o objetivo de recolher dados magnéticos terrestres e completar a travessia da Passagem do Noroeste, a expedição teve início em maio de 1845 e os seus dois navios, HMS Erebus e HMS Terror, foram avistados por europeus pela última vez na Baía de Baffin, em agosto daquele ano. Terão ficado presos no gelo ao largo da Ilha do Rei Guilherme, e toda a tripulação de 128 homens terá perecido, vítima de hipotermia, escorbuto e fome. Até ao final da década de 1980, várias expedições e autópsias indicaram que alguns tripulantes estavam intoxicados com chumbo devido aos enlatados consumidos – entre as provisões dos navios, suficientes para três anos, havia 8 000 latas de conserva. O fornecedor fora Stephen Goldner, um fabricante que obteve o contrato apenas sete semanas antes da partida dos navios. A pressa comprometeu a qualidade dos enlatados, que, devido a uma soldadura defeituosa, apresentavam elevados teores de chumbo.
Segundo relatos de inuítes, alguns membros da tripulação recorreram ao canibalismo, o que foi, pelo menos em parte, corroborado por evidências forenses, como marcas nos ossos encontrados na ilha. De forma romanceada, estes factos são retratados no livro The Terror (2007), de Dan Simmons, adaptado para uma série televisiva em 2018.
Poderá também ter havido casos de botulismo, uma condição caracterizada por paralisia muscular, que, sem tratamento, apresenta alta taxa de mortalidade por asfixia. É causado pela Clostridium botulinum, uma bactéria anaeróbica (não necessita de oxigénio) capaz de se desenvolver em conservas mal esterilizadas. Ao metabolizar os alimentos, este microrganismo gera gases como dióxido de carbono e hidrogénio, os quais podem dilatar as latas contaminadas. No entanto, o seu perigo deve-se à neurotoxina que produz: a toxina botulínica. Esta substância, uma das mais tóxicas conhecidas, inibe a libertação de acetilcolina, um neurotransmissor essencial para a contração muscular. Surpreendentemente, em doses mínimas e sob o nome de Botox, a toxina é usada em tratamentos estéticos para eliminar rugas, graças à sua capacidade de relaxar os músculos por alguns meses.
Acreditem ou não, irei abrir em seguida uma lata de ananás para acompanhar a fondue chinoise do jantar.