A sequela

Com os cidadãos desiludidos com a política, Marcelo teve a virtude de contrariar esta tendência, assumindo-se como uma popstar, transformando as selfies numa imagem de marca.

Tenho muito apreço por Marcelo Rebelo de Sousa. Não se trata da mera admiração que as suas qualidades intelectuais, por si só, justificariam plenamente. Aprecio genuinamente o nosso Presidente, desde logo porque, ao contrário do antecessor, faz-nos sentir que gosta de nós, das nossas idiossincrasias… Talvez porque partilha e encarna algumas das nossas fragilidades.


Ao longo dos seus mandatos, habituámo-nos a manter com ele uma relação feliz. Mesmo se, aqui e ali, o seu estilo jovial transborde para intervenções e comportamentos que, nas suas aparições diárias, roçavam o populismo.
Temos consciência que deveria ser, por vezes, mais contido e menos prolixo, e que há maquiavelismo na sua ação política. Finge improvisar ou até cometer lapsos quando afinal tudo premeditara. Mas percebemos que isso lhe está no sangue. Não nos surpreendemos quando, no seu sorriso, adivinhamos as traquinices a que, numa visão benevolente, nunca resistiu. Comportamento que, na ótica dos seus adversários ou visados, constitui um vício a que sucumbe, desde os tempos em que dirigia o Expresso ou cozinhava vichyssoise. E nem sequer nos admiramos quando esta prática reiterada resulta em contradições ou arrependimentos sobre a felicidade perdida.


Com os cidadãos desiludidos com a política, com o crescente desamor pelos políticos, Marcelo teve a virtude de contrariar esta tendência, assumindo-se como uma popstar, transformando as selfies numa imagem de marca. Essa popularidade que cultivou possibilitava-lhe correr riscos que, por diversas razões, não ousou assumir. O seu capital político permitia-lhe impor transformações que ficaram por fazer. E foi pena. Em particular, quando não usou o seu prestígio, autoridade e popularidade para contrariar o autofagismo entre os agentes políticos e os proteger, impondo o princípio da separação dos poderes e impedindo a judicialização da política.
Não o fez, e permitiu que isso o empurrasse para a dissolução da Assembleia da República e a queda da maioria governamental, acabando por ser, também ele, vítima desse desfecho. Mesmo sem o ‘caso das gémeas’, não deixaria de surgir uma outra tramoia qualquer com o objetivo de lhe causar a erosão a que todos os políticos estão sujeitos. Mas Marcelo demonstrou, então, uma fragilidade comunicacional que só foi possível porque acreditava ser imune a tudo o que sucedia à sua volta.


Percebe-se o desalento com a perda do reconhecimento mas, agora, na fase derradeira da sua presidência, recuperou a boa forma, que se reflete na retoma da popularidade, o combustível que sempre o animou. Assistimos a uma sequela da série de filmes que Marcelo tem personificado, uma nova fase em que faz das tripas coração para aplacar a crítica e as mazelas de uma história em que foi um alvo – não foi autor ou cúmplice.
A retoma da sua popularidade coincide com uma bipolarização que já não conhecíamos desde as eleições presidenciais de 1986, em que Soares derrotou Freitas do Amaral. Este é um tempo que não dispensa o papel pedagógico e a vigilância crítica do presidente na denúncia da demagogia, contrariando quem aposta na ingovernabilidade e fomenta clivagens.
O sucesso ou insucesso de Marcelo, nesta sua última empreitada, será também determinante para a escolha do seu sucessor daqui por um ano. Não teremos um presidente igual, porque não existe. Mas, no atual contexto, não podemos ter um presidente de fação, que se imiscua ou tome partido em querelas partidárias. Espero que o futuro presidente, tal como Marcelo, goste de nós. Que seja exigente na equidistância, e nos faça acreditar.