Vasco Rocha Vieira. O último governador português de Macau 

1939-2025. O português a quem foi devolvida a última bandeira do império.

No fim, restam os símbolos. As relíquias algo funestas que servem a uma liturgia cada vez mais desconexa, um apego entre o afetado e o senil. Foi à meia-noite do dia 20 de dezembro de 1999, que Vasco Rocha Vieira recebeu a bandeira portuguesa que estava erguida no Palácio da Praia Grande, pondo um ponto final no último resquício do Império. A última bandeira do Império manteve-a ele junto ao peito, nesse momento que assinalava a passagem de poder sobre Macau.

Na madrugada desta quarta-feira, o tenente-general morreu aos 85 anos. Fora nomeado Governador de Macau, cargo que ocupou em abril de 1991, pelo então presidente Mário Soares, que lhe deu orientações no sentido de regressar ao território que conhecia desde os anos 1970, dizendo-lhe: «Veja se põe aquilo na ordem». Sendo que pôr ordem em Macau passava por fazer esquecer os efeitos do chamado «caso do fax», que levou à queda do anterior governador Carlos Melancia, grande amigo de Soares, acusado de corrupção. Até hoje não se dissiparam inteiramente as suspeitas de que o financiamento do PS – e das campanhas eleitorais para a Presidência da República – provinham da ‘árvore das patacas’ que caía daquele território português até 1999, e o escândalo envolvendo os negócios da Emaudio foram o elemento mais tóxico da vida política de Soares, que fez do tema um tabu. A nomeação de Rocha Vieira, que até ali desempenhara já funções enquanto Chefe do Estado-Maior do Exército e ministro da República nos Açores, prendia-se com o ter ainda no seu currículo a posição de chefe do Estado-Maior Territorial Independente de Macau (de 1973 a 1974), comissão que interrompeu quando se deu o 25 de Abril. Ao longo da sua carreira nas Forças Armadas foi ainda representante Militar Nacional no Quartel-General Supremo dos Poderes Aliados da NATO, na Europa – SHAPE (na Bélgica), e diretor honorário de armas e engenharia.

‘Um dos mais ilustres oficias do Exército’

Vasco Rocha Vieira nasceu em Lagoa, Algarve, a 16 de agosto de 1939. Viveu em Moçambique até aos 10 anos, estudou depois no Colégio Militar em Lisboa. Em 1956, recebeu o prémio Alcazar de Toledo por ser o finalista com melhor avaliação de entre todos os alunos, tendo-se licenciado em Engenharia Civil. Tirou ainda vários cursos e especialidades, incluindo o Curso Geral de Estado-Maior, o Curso Complementar de Estado-Maior, o Curso de Comando e Direção para General Oficial e o Curso de Defesa Nacional.

«O General Rocha Vieira foi um dos mais ilustres oficiais do Exército Português na transição para a Democracia e nas primeiras décadas da sua afirmação», lê-se numa nota no site da Presidência. Foi Chefe do Estado-Maior do Exército e, por inerência, membro do Conselho da Revolução entre 1976 e 1978. Sobre este capítulo na sua vida, o ministro da Defesa, Nuno Melo, destacou o «papel importantíssimo» do general «na recondução das Forças Armadas à tutela civil e através disso, na consolidação do próprio regime democrático».

Conflitos

Enquanto ministro da República dos Açores entre 1986 e 1991 entrou em conflito com o então presidente do governo açoriano, Mota Amaral, por causa do estatuto político-administrativo da região autónoma, mas o momento mais polémico do seu percurso viria depois de se tornar o 138.º e último governador português de Macau, tendo tomado a decisão de financiar, com dinheiro macaense, a Fundação Jorge Álvares, cuja criação foi proposta pelo próprio tenente-general ao então presidente Jorge Sampaio, a dois meses de abandonar o cargo de governador, sendo o episódio que fez culminar as tensões entre os dois. Ao suceder a Soares, Sampaio reconheceria que hesitou em reconduzir o governador de Macau, e admite que chegou mesmo a ser deselegante com Rocha Vieira. «A única vez que fui deselegante foi quando exigi uma reunião com todo o governo [macaense] (…) Fui mal-educado porque o Rocha Vieira me irritava com os seus silêncios e aquele ar pouco dado a comunicar francamente. Dei a volta à mesa, pedi a cada um que falasse do seu setor e ele ficou para morrer», disse Jorge Sampaio na biografia de José Pedro Castanheira.

A constituição da Fundação Jorge Álvares a dias do ‘handover’ de Macau entornou definitivamente o caldo entre os dois, como assinalou Ana Sá Lopes. «Rocha Vieira tinha falado meses antes na hipótese de constituir a fundação (com dinheiros de Stanley Ho), mas Sampaio tinha colocado condições, nomeadamente que o Governo tivesse uma palavra a dizer na nomeação dos curadores. Rocha Vieira ignorou as exigências de Sampaio e avançou sem dizer mais nada».

O caso foi investigado e, em 2000, o antigo governador de Macau foi ilibado após um relatório de uma comissão independente ter concluído que não tinham existido quaisquer ilegalidades na transferência de 50 milhões de patacas, que esteve na base daquela Fundação. Rocha Vieira insistia que a decisão fora «legal e legítima», considerando que «apoiar financeiramente a criação da Fundação Jorge Álvares» era algo que estava «enquadrado na competência do Governador de Macau».

‘Um homem de exceção’

No prefácio da biografia de Rocha Vieira, da autoria de Pedro Vieira – Todos os portos a que cheguei –, de 2010, o antigo presidente da República Ramalho Eanes, de quem Rocha Vieira era muito próximo, vinca que foi «surpreendente e incompreensível assistir à tentativa de assassinato cívico de um homem que tanto serviu o país, perpetuada através da manipulação comunicativa da chamada questão Fundação Jorge Álvares». Na nota de pesar que fez chegar à Lusa, Eanes defende que «o general Rocha Vieira era um homem de exceção pela sua ação de excelência e pela sua responsabilidade social assumida, merecendo ser, justamente, considerado ‘um dos melhores dos nossos maiores’».

Por sua vez, o ex-presidente da República Aníbal Cavaco Silva, que em 2015 condecorou Rocha Vieira com a Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, foi um de tantos a manifestar pesar e a prestar-lhe homenagem. «Guardamos do general Rocha Vieira a imagem solene e digna do arriar da Bandeira Nacional em Macau, fez agora 25 anos. Mais importante do que essa imagem, é o trabalho de Rocha Vieira como último Governador de Macau, dignificando os últimos anos da nossa presença no Oriente, permitindo-nos deixar o território reconciliados com a nossa História e orgulhosos da obra que deixámos», afirmou Cavaco Silva, numa nota de condolências.