A nossa relação com o real

Os meninos e as meninas, que antes faziam camionetas com latas de sardinha e bonecas de trapos, deixaram de construir os seus brinquedos e já quase não brincam com eles: entretêm-se apenas com os videojogos, onde tudo é imaterial. A relação do ser humano com a matéria está a perder-se.

Falei há algumas semanas sobre os perigos do telemóvel. Cada vez mais pessoas – e, de uma forma generalizada, os jovens – veem hoje o mundo através do pequeno ecrã do telemóvel. Não olham à volta para ver a paisagem ou observar quem se cruza com eles, não olham para cima para ver um avião que passa, caminham no passeio como zombies de cabeça baixa com o telemóvel na mão a olhar para o ecrã, esperam pela abertura do semáforo com a mesma atitude ausente, atravessam as ruas sem despegar os olhos da imagem.
O telemóvel é tão absorvente que destruiu as relações familiares. O pai está no sofá a ver vídeos ou a responder a mensagens ou a emails, a mãe está noutro canto a fazer o mesmo, os filhos estão cada um no seu quarto a jogar videojogos.
Acontece que o fenómeno é mais profundo, pois não se resume aos telemóveis. Tem que ver com a própria relação do homem com a matéria. O homem está a desligar-se da matéria.
Na Idade Média, as guerras resolviam-se em lutas corpo a corpo. Nas cargas de infantaria ou cavalaria, os choques eram diretos, à espadeirada. Sentia-se o cheiro do sangue. Depois, com o aperfeiçoamento das armas de fogo, começou a matar-se à distância, com tiros de espingarda ou de canhão. Mas tinha, ainda assim, de existir contacto visual. Era preciso ver o inimigo para o alvejar. Ora mesmo essa exigência desapareceu. Hoje usam-se mísseis e drones para matar inimigos que não se veem e só foram localizados através de satélites.
Lá virá o dia em que os soldados serão substituídos por robôs. Mas aí será um grande passo. No caminho que a humanidade tem seguido de aperfeiçoar sempre mais os instrumentos de morte, a substituição de soldados de carne e osso por máquinas seria uma notável conquista.
Passando a outro plano, as crianças começaram por fabricar os seus brinquedos. Faziam pequenas camionetas com latas de conserva. Depois, com a industrialização, os brinquedos passaram a ser fabricados em série e vendidos nas lojas ou nas feiras. Com isto, a relação das crianças com os brinquedos mudou: deixaram de os construir e passaram apenas a usá-los. Aquilo que faziam com as mãos, contribuindo para o seu desenvolvimento manual e mental, passou a comprar-se feito. Só que mesmo isso também já praticamente acabou: os meninos e as meninas deixaram de brincar com camionetas, soldadinhos ou bonecas e passarem a entreter-se com os videojogos, onde tudo é imaterial.
O fenómeno do fim da relação do homem com a matéria é generalizado. Os jornais em papel são substituídos por versões online. Uma pequena história ilustra bem esta evolução. Há uns anos, o jornal que eu então dirigia oferecia assinaturas online a todas as embaixadas portuguesas distribuídas pelo mundo. Era uma iniciativa altruísta e em geral muito apreciada. Um belo dia, porém, recebi o telefonema de um embaixador que queria fazer uma assinatura em papel. Estranhei. Tratava-se de uma embaixada distante e ele só iria receber o jornal uns dias depois. Expliquei-lhe isso – recordando que a embaixada dispunha do jornal online no próprio dia. Mas o diplomata explicou:

  • Não é a mesma coisa. Eu gosto de folhear, de voltar atrás, de ver a notícia que está na página ao lado, e isso só se pode fazer na edição em papel.
    É óbvio que este homem nascera numa geração em que só havia jornais em papel – e habituara-se àquele ritual. Mas os jovens de hoje, que já nasceram na era do digital, não leem os jornais dessa maneira. Leem notícias. Não folheiam as páginas do jornal: vão diretamente ao Google ver as notícias que lhes interessam. É outro mundo.
    Um mundo em que não foram só as batalhas corpo a corpo que deixaram de existir. Em que não são só os brinquedos de lata, de madeira ou mesmo de plástico que tendem a desaparecer. Em que não são só os jornais em papel que têm a vida muito difícil. Falamos de um mundo em que a relação do homem com a realidade está perder-se. Porque a perda de relação com a matéria significa, no fundo, a perda de contacto com a realidade. O ser humano está a desligar-se cada vez mais do real, construindo uma realidade virtual paralela.
    Os sinais mais claros deste fenómeno são, talvez, a tendência para o desaparecimento do dinheiro físico, porque os pagamentos se fazem cada vez mais com cartão ou telemóvel – e, ao mesmo tempo, o aparecimento das criptomoedas, algo que nunca ninguém viu nem apalpou mas em que se investem hoje milhões.