Ah, os sublinhados! Quem tem o hábito de comprar livros em segunda mão sabe do que falo. E talvez saiba também que, tal como há diferentes tipos de sublinhados – finos ou grossos, com cor ou sem ela, a caneta ou a lápis -, há diferentes tipos de sublinhadores, se é que posso usar esta palavra.
Existe o sublinhador irresponsável, que sublinha tudo o que lhe aparece à frente, mas rapidamente se cansa, pelo que podemos estar certos de que passadas as primeiras dez ou vinte páginas, raramente mais do que isso, teremos o resto do livro limpo. Fico sempre com a dúvida: será que estes sublinhadores leem os livros até ao fim?
Depois, existe o sublinhador criterioso, que só faz marcações pontuais, normalmente discretas, que denotam um leitor experimentado.
Existe ainda o sublinhador histriónico, que não hesita profanar os seus livros com pontos de exclamação e grandes traços a marcador de cores berrantes. Tenho à minha frente um livro de História com parágrafos inteiros sublinhados, e com páginas (originalmente em branco) cobertas com comentários em grandes letras manuscritas a caneta de feltro vermelha.
E, por fim, temos o sublinhador implacável. Ao contrário do primeiro, leva a sua missão até ao fim, sem dar tréguas ao posterior proprietário do livro. Este, a par do histriónico, que gosta de dar nas vistas, representa o caso mais complicado, pois sabemos que teremos de conviver com a sua companhia até à última página – e a leitura é um ato solitário, quando muito um diálogo entre o autor e o leitor.
Adquiri recentemente um livro que se inscreve nesta última categoria, mas felizmente encontra-se sublinhado a lápis. Conseguiria eu devolvê-lo a um estado mais ou menos pristino?
Peguei numa borracha e atirei-me à minha tarefa com o mesmo afinco com que o sublinhador se atirara à sua. O papel, apesar de antigo, era bom e aguentava as minhas investidas. A cada página apagada, afastava as aparas da borracha com um pincel de cerdas macias.
À medida que ia progredindo, meticulosamente, do fim para o princípio, comecei a perguntar-me se o que estava a fazer não seria um imperdoável ato de impiedade. Uma pessoa, tanto quanto sei já falecida, dedicara-se a ler e a sublinhar as páginas de um livro. E eu apagava, sem dó nem piedade, a memória desse tempo, só pelo capricho de ter o livro ‘limpo’.
E é por essa altura que me deparo com o seguinte comentário na margem do texto: ‘O prático, o patife’. (Ou seria ‘O patife, o prático’? Como apaguei, já não sei dizer a ordem exata das palavras.)
Por um momento, parecia que o anterior proprietário do livro me estava a vigiar lá a partir de onde ele se encontrava. O epíteto aplicava-se-me como uma luva, face àquela patifaria de apagar os vestígios de uma vida passada. Mas depois, talvez para me tranquilizar, ocorreu-me que também poderia ver as coisas ao contrário. Não seria ele ‘o prático’, uma vez que não se privara de sublinhar aquele belo livro, mesmo sabendo que isso condicionaria a leitura de quem viesse depois?
Seja como for, levei a tarefa até ao fim. Com um certo peso na consciência e sem saber ao certo se, ao apagar todos os vestígios, afinal tinha valorizado ou desvalorizado o livro.
O sublinhador implacável
Peguei numa borracha e atirei-me à minha tarefa com o mesmo afinco com que o sublinhador se atirara à sua. O papel era bom e aguentava as minhas investidas.