Estava mesmo convencido de que fora nas Caminhadas com Robert Walser (ed. CFB) que tinha lido uma referência ao romance Michael Koolhaas, de Heinrich von Kleist. Mas agora, folheando-o de uma ponta à outra, não encontro qualquer menção a esse livro. A Gottfried Keller, sim, e especialmente a Heinrich, O Verde, do qual Walser louva a «beleza terrível»; a Balzac, Tolstói e Dostoievski também; a Schiller e a Hölderlin, várias. E ainda a outros escritores oitocentistas com apelidos estranhos ou praticamente esquecidos, como Gerstäcker, Merlitt e Zschokk.
Kleist também é mencionado. Mas não o seu Michael Koolhaas. A menos que me tenha escapado alguma coisa.
Pouco importa. É sempre um prazer regressar a estas Caminhadas, cujas páginas nos permitem testemunhar como era o peculiar Robert Walser (1878-1956) nos últimos anos de vida, quando se encontrava internado no sanatório de Herisau, na Suíça. Além de o vermos, podemos ouvir-lhe a voz, tal como foi registada pelo seu editor Carl Seelig, que o visitava regularmente e que se revela ele próprio um observador sensível e um escritor de mérito.
São vários os encantos deste pequeno livro, um dos quais o facto de esses sábios comentários de Walser sobre os escritores e a literatura surgirem intercaladas com saborosas descrições de Seelig sobre os passeios que davam e os repastos que tomavam juntos.
O_humor de Walser é outro dos seus trunfos.
«Sim, os escritores têm muitas vezes focinhos terrivelmente compridos que usam para adivinhar o futuro», diz o escritor a certa altura. «Farejam os acontecimentos vindouros com os porcos farejam cogumelos». Ou, quando lhe Seelig lhe propõe uma caminhada até Teufen, ele reage: «Pela estrada?» «Sim, se é o que prefere, mas olhe que chove a cântaros, Sr. Walser!» «Tanto melhor! Não se pode caminhar sempre à luz do sol.» E_lá vão eles alegremente pela chuva.
Regresso a Michael Koolhaas, de Heinrich von Kleist. Situado no século XVI, no período das guerras religiosas que assolaram a Alemanha, esta novela conta a história de um negociante de cavalos justo e temente a Deus que um dia vai vender os seus belos corcéis no mercado de Leipzig. Chegado ao castelo na fronteira, o alcaide trava-lhe o caminho, dizendo que faltam uns papéis para passar para o outro lado. Os animais ficam retidos e o protagonista segue contrariado. Depois, percebendo que foi enganado, leva a vingança às últimas consequências.
Não encontro no livro de Seelig qualquer referência a Michael Koolhaas, mas encontro uma observação de Walser que se lhe aplica como uma luva:_«O caminho direito conduz muitas vezes à injustiça, e o caminho injusto ao direito». O inflexível sentido de justiça de Koolhaas leva-o a cometer algumas injustiças e a semear a sua própria desgraça.
Leio também nas Caminhadas que Walser «nunca teve a sua própria biblioteca – quando muito um monte de livrinhos da Reclam», ou seja, populares edições de bolso. E logo fico a sentir um carinho especial pela minha edição do Michael Koolhaas, de folhas amareladas, comprada por um euro numa papelaria de uma vila raiana de Espanha.