A maior transformação da democracia

Nenhum país de pequena dimensão como Portugal está preparado para receber e integrar condignamente 1,2 milhões de pessoas em sete ou oito anos. Esta é a maior transformação social dos últimos 50 anos. Há que lidar com ela antes que expluda, como aconteceu noutros países da Europa.

Há pouco mais de três anos o país parecia ter uma maioria sociológica de esquerda. O Partido Socialista governava em maioria absoluta, com o lado esquerdo do Parlamento a ter ainda a representação do Bloco de Esquerda, do Partido Comunista Português e do Livre. Essa maioria de esquerda já vinha de anos anteriores, desde que António Costa deitou abaixo o muro que separava o PS dos partidos mais à esquerda para criar a geringonça. Mas, desde então, o país virou à direita, acompanhando os ventos que vêm da Europa. Apesar de Luís Montenegro ter, no último ano, liderado um governo minoritário, as eleições de 2024 resultaram numa clara maioria de direita na Assembleia da República. Um resultado que, a avaliar pelas sondagens, irá repetir-se no próximo dia 18 de maio. A pergunta então é: o que mudou ou o que aconteceu ente 2015 e 2024 para que uma viragem tão brusca ocorresse? Duas notícias desta semana podem ajudar a explicá-la.

A primeira foi a divulgação pela Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) do número de estrangeiros atualmente a viver em Portugal: quase 1,6 milhões, que correspondem a cerca de 15% da população. Mas mais importante do que o número global é o que ele representa em relação aos anos anteriores: significa que, em relação a 2017, quando viviam no nosso país 421 mil estrangeiros, o número de imigrantes quadruplicou. E isso é, incontestavelmente, a maior alteração demográfica da história da democracia portuguesa, que nem sequer pode ser comparada com o que aconteceu em 1974-1975 quando cerca de 500 mil pessoas regressaram (e viajaram pela primeira vez) para Portugal, oriundas das antigas colónias.

Apesar dos conflitos que então ocorreram, tratavam-se de pessoas que partilhavam uma história, língua e identidades comuns. Que ajudaram, pela iniciativa e mentalidades mais abertas que trouxeram, a transformar o país social, cultural e economicamente.

Hoje a situação é muito diferente. A mais recente vaga de imigrantes – de que o país muito precisa para as atividades industriais, agrícolas, etc. – é sobretudo masculina e provém de países sem qualquer afinidade cultural ou linguística com a portuguesa. Trazem novos hábitos, novas formas de viver em comunidade e, automaticamente, novas dificuldades de integração.

Mesmo que este crescimento não tenha sido acompanhado por um aumento da criminalidade – que não foi – é inevitável que nas zonas onde a transformação populacional é mais visível tenha crescido a sensação de insegurança. É também espectável que haja um aumento de pressão sobre os serviços públicos, desde a própria AIMA ao Serviço Nacional de Saúde. É normal que haja dificuldades nas escolas onde há hoje turmas inteiras ou maioritárias com alunos que não falam português, deixando aos professores sem formação para tal a tarefa de os integrar.

E isso não é de estranhar: nenhum país de pequena dimensão como Portugal está preparado para receber e integrar condignamente 1,2 milhões de pessoas em sete ou oito anos. Sobretudo quando esse acolhimento não foi pensado ou estruturado. Pelo contrário. A muitos milhares de imigrantes que procuram um trabalho honesto e melhores condições de vida para si e para as suas famílias foi simplesmente prometido um Portugal aberto, recetivo e com emprego para todos – o que não era verdade. Muitos acabaram por perceber que vieram ao engano e deram por si sem casa, trabalho ou rendimentos para enviar para aqueles que os ajudaram a pagar a viagem para a Europa. Essa mudança demográfica, que não teve respostas condignas, teve necessariamente efeitos no eleitorado.

A segunda notícia, que poderá estar relacionada com a primeira, foi a divulgação pelo Eurostat de que, em 2024, os preços das casas aumentaram 9,1% em Portugal, comparando com um crescimento de 2% na zona euro. Colocando em perspetiva, segundo o Eurostat, entre 2010 e 2024 o preço das casas aumentou 55,4% na União Europeia. Em Portugal a subida foi de 120% – e desde 2015 sempre acima da média europeia, com o pico a ocorrer em 2022 quando subiram 12,6%. Não admira, portanto, como indicava-a sondagem publicada pelo Nascer do Sol na última edição, que a habitação esteja no topo das preocupações dos portugueses.

Os preços aumentam porque não há casas suficientes no mercado para a procura. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, em 2024 foram construídas 24 mil casas, um máximo desde 2011. No mesmo período chegaram a Portugal 250 mil pessoas e o turismo aumentou exponencialmente. Mesmo contando com a emigração, é natural que a pressão sobre o setor da habitação seja imensa e que se multipliquem as reportagens com imigrantes a viver em casas sem condições.

Não admira por isso que imigração e habitação sejam dois dos mais discutidos temas da campanha eleitoral. No passado, André Ventura foi deixado a falar sozinho sobre imigração, propondo soluções fáceis para um problema complexo. Isso valeu-lhe uma bancada com 50 deputados. Hoje, com o governo a tomar medidas concretas e o PS a recentrar a sua posição veremos se isso será suficiente para esvaziar o balão do Chega. Mas que não haja dúvidas: estamos a enfrentar a maior transformação social dos últimos 50 anos. Há que lidar com ela antes que expluda, como aconteceu noutros países da Europa.

nuno.pinto@newsplex.pt