Nem bárbaros, nem do sul

Os homens do mar, curtidos pelo sol, pelo sal e pelas dificuldades da navegação, não seriam o cúmulo da sofisticação. Mas se fossem ‘bárbaros’ nunca teriam chegado tão longe

Mão amiga fez-me chegar, por alturas da sua publicação (novembro de 2023), Namban-Jin – Os portugueses no Japão, de Luís Filipe Thomaz (ed. Gradiva), historiador especializado na Expansão e em estudos orientais, que abandonou a vida civil para vestir o hábito monástico da Igreja Ortodoxa. Por razões várias que não são difíceis de entender, imaginava-o longe daqui, retirado num qualquer mosteiro da Europa Oriental, mas não: presta serviço na pequena capela de S. João Crisóstomo, em Cascais, onde curiosamente passo com muita frequência no meu passeio matinal.

Podemos dizer que este livro sobre as viagens e as relações dos portugueses com o Japão não vai logo direito ao assunto. Compreende-se. Também a chegada dos nossos navegadores ao país do sol nascente não se produziu do dia para a noite, sendo alcançada graças a demorados avanços. Por isso o autor começa com aquilo a que chama, numa imagem feliz, «a lenta aproximação dos extremos».

Primeiro, claro, houve que sair para o mar. Exploraram-se as ilhas atlânticas e a costa ocidental africana, até se abrir a rota do Cabo da Boa Esperança. Como explica o autor, havia então duas correntes, ou doutrinas: uma «imperialista», «preocupada com o fortalecimento e dilatação do Estado, propensa, em matéria de comércio, aos monopólios realengos»; e uma outra «liberal», «mais interessada no comércio pacífico do que na conquista, avessa à imiscuição do Estado na mercancia e tendente a privilegiar os interesses dos particulares em detrimento dos da Coroa».

O Rei D. Manuel favoreceu a primeira – e talvez nem houvesse outra opção.

O Índico era então dominado pelos muçulmanos. «Em muitas partes do Hindustão prevalecia […] a doutrina de que a terra é do soberano, o mar dos mercadores». Esses mercadores, até à chegada dos portugueses, eram mouros, que, como nos contam Os Lusíadas, ofereceram uma feroz oposição aos recém-chegados. Só muito a custo os portugueses conseguiram impor-se-lhes e passar a controlar o comércio do Oriente.

Os venezianos, que até então distribuíam as especiarias pela Europa, perderam o negócio. E os seus rivais florentinos em Lisboa faziam troça deles, dizendo que já os viam tornarem-se pescadores…

Mas D. Manuel não estava ainda satisfeito. E deu instruções ao vice-rei, Francisco de Almeida, para ir «além da Taprobana» (Ceilão, atual Sri Lanka). Que enviasse uns quantos navios, «a descubrir a Ceilão e a Pegu e a Malaca e a quaesquer outros lugares e cousas daquelas partes».

Ceilão, onde se estabeleceu uma fortaleza, constituiu, assim, uma espécie de degrau numa longa escada para chegar ainda mais longe. Tal como Malaca, conquistada em 1511. Foi a partir daí que o explorador Jorge Álvares rumou à China, a bordo de um junco (navio à vela chinês), aportando em 1513. Dois anos depois, Tomé Pires, enviado à corte imperial dos Ming, escrevia a sua Suma Oriental do Mar Roxo até aos Chins, onde «se encontra a primeira referência ao Japão da literatura ocidental», excluindo a de Marco Polo.

Regresso à expressão «lenta aproximação dos extremos». Desde a conquista da praça de Ceuta, apontada como o marco inicial da Expansão, tinham decorrido exatamente cem anos. Apesar dos avanços e recuos, o resultado era espetacular.

Quando os portugueses chegaram ao Japão, em 1543, os nativos chamaram-lhes ‘Namban-jin’, ou seja, ‘bárbaros do sul’. É natural que os homens do mar, curtidos pelo sol, pelo sal e pelas dificuldades da navegação, não fossem o cúmulo da sofisticação. Mas não eram certamente ‘bárbaros’ – se o fossem, nunca teriam chegado tão longe. E também não eram ‘do sul’. Vinham de ‘baixo’, da China, é certo. Mas na realidade Lisboa fica a norte de Tanegaxima, a primeira ilha onde desembarcaram, e até de Tóquio.