O Matuto e a Com – Paixão

O Matuto já viu o futuro e ele não é brilhante: inteligência artificial, realidade aumentada, óculos VR, zero empatia. Tudo muito higiénico, tudo muito digital.

O Matuto não tem telemóvel (celular no Brasil, por favor). E, não sente falta do bicharoco – um ditador a tiracolo. O Matuto é antes de mais um olho que lê, do que um dedo que digita. Na realidade, o Matuto acredita que os livros irão salvar o mundo e não a tecnologia. Mas, adiante!

A propósito, o Matuto leu numa crónica da Maria do Rosário Pedreira que Alberto Manguel, aquele que em tempos leu para Borges e ajuntou mais livros do que formigas num carreiro, disse que foi num romance que sentiu, pela primeira vez, a dor que não era sua. Que o primeiro golpe de compaixão veio com Coração, de Edmondo de Amicis. Que mais tarde, entre as páginas de Jane Eyre, Anna Karénina, Dom Quixote ou David Copperfield, aprendeu a chorar as lágrimas dos outros, como se fossem suas. Ora, o Matuto — que não sendo doutor, nem cientista, tem o coração ainda inteiro — deu por si a concordar. E não foi preciso nem um palacete nem uma biblioteca com nome pomposo.

A Belinha, a visita conservadora da ‘Casa das Pontes’, saiu-se com uma novidade curiosa. Parece que certos estudiosos — desses que olham para o mundo com microscópio e gráficos — concluíram que afinal ler ficção faz bem ao coração. “Não o músculo que bate no peito, mas aquele que nos faz atravessar a rua para ajudar alguém com sacolas pesadas” – elucidou a Belinha. “É um estudo seríssimo (a predilecção da Belinha pelos superlativos continua) da New School of Social Research, nos Estados Unidos”. O Marcello, a visita reacionária das ‘Pontes’, tossicou. Reacção Pavloviana a qualquer referência à terra do Trump. “Eles juram a pés juntos” – elaborou, impávida, a Belinha – “que quem lê romances tem mais empatia”. O Matuto empatizou com a ideia.

A Belinha continuou: “Mas a notícia vem embrulhada em tristeza. As vendas de ficção literária estão em queda livre, na Europa e nos Estados Unidos. As prateleiras enchem-se de livros de autoajuda, dietas milagrosas e biografias de influencers com vinte e dois anos e um cão a que chama “filho”. Romance, a sério mesmo, anda pelas ruas da amargura”. O Marcello concordou entusiasta: “Hoje, as pessoas vivem de cara encafuada no pequeno altar luminoso dos ecrãs. As conversas são feitas a toque de polegar, com emojis a substituir as palavras, e os sentimentos a serem despachados em gifs e figurinhas. O calor do olhar virou pixel. As pausas foram substituídas pelo “digitando…” do WhatsApp”. O Matuto apreciou esta análise.

É verdade que os gaiatos, sabem tudo: identificam cinquenta variações de carinhas sorridentes.  Sabem distinguir entre um “haha” sincero e um “kkk” sarcástico. Mas se lhes mostrarem uma cara real — com rugas, olheiras, um canto da boca a tremer entre o riso e o desespero — não fazem ideia do que é. No outro dia uma aluna do Matuto perguntou se havia emoji para “solidão”. Como se a solidão coubesse num desenho de telemóvel. Como se o coração, para ser compreendido, tivesse de vir com legenda. A era sincera. Era real. A miúda já não sabia exprimir aquilo que lhe doía. Só sabia que queria procurar o ícone correspondente.

A Belinha arrumou a questão dizendo que “estamos a perder os códigos da alma. Como quem esquece um idioma” O Marcello afinou pelo mesmo diapasão. (raro estes dois concordarem) “E talvez um dia se precise de tradutor simultâneo para reconhecer um amigo a chorar. “Está a chorar? Ou só com sono?”. A empatia será um dialecto morto”. O Matuto suspeita que têm razão.  Na cabeça do Matuto há coisas que não se aprendem nos tutoriais do YouTube. A vida acontece na dança e contradança das histórias contadas baixinho, dos livros cheios de histórias e com cheiro a História.

O Matuto já viu o futuro e ele não é brilhante: inteligência artificial, realidade aumentada, óculos VR, zero empatia. Tudo muito higiénico, tudo muito digital. Vamos conseguir ignorar o sofrimento do outro com muito mais eficiência — haverá um app para isso. Um botão para “Não me incomodes com problemas alheios”; outro para “Responder com frase motivacional”; e uma versão premium que bloqueia automaticamente qualquer apelo à solidariedade. A compaixão? Vai virar peça de museu. Em exibição no Museu das Emoções Extintas. Os guias explicarão aos visitantes, em tom didáctico: “Aqui temos a compaixão, usada pelos humanos entre os séculos XVI e XXI. Era uma espécie de eco do coração, uma reação ao sofrimento do próximo. Obsoleta, claro. Foi descontinuada com sucesso.” Haverá workshops. A empatia será ensinada em oficinas de soft skills, com coffee-break vegan e certificado em papel reciclado. Aprenda a imitar sentimentos em três passos: contacto visual simulado, sorriso automático e frases pré-fabricada. E quando alguém cair no chão, ninguém irá ajudar. Ninguém se incomodará. Abrir-se-á uma sondagem online: “Acha que merece ajuda? Vote já!” E depois haverá um crowdfunding para pagar o tratamento — não por altruísmo, mas porque dá likes. Que é a nova moeda da “compaixão”.

E foi então que o Matuto pensou que talvez a palavra compaixão andasse a pedir para ser lida devagar, com hifen e tudo: com-paixão. Afinal, “paixão” vem do latim passio, que quer dizer sofrimento — como na Paixão de Cristo, e o Seu sofrer Redentor. Porque quem ama com-paixão, carrega a dor do outro como quem ajuda a levar uma cruz. E talvez seja isso que os livros ainda fazem: ensinam a sofrer com, a sentir com, a viver com. Em tempos de Páscoa, o Matuto acredita que a única esperança — do mundo, das almas e dos olhos — é reaprender a viver assim: com-paixão.

O Matuto olha e pensa: talvez um dia, quando o último romance for apagado do último e-reader, e o último velho que sabia contar histórias morrer sem que ninguém lhe ouça a voz, alguém diga: “coitado, era um resistente”! Com isto, o Matuto sentiu uma vontade louca de reler “O Velho que lia Romances de Amor” do saudoso Luíz Sepúlveda. O livro como um amigo habitual esperava pelo Matuto. O Matuto abriu o livro com o cuidado de quem desenrola uma carta antiga. As palavras de Sepúlveda vieram-lhe como quem volta a casa — sem pressa, sem ruído, como se soubessem o caminho.