Ainda não se sabe exatamente o que causou o apagão da passada segunda-feira. O mais provável é que a explicação cabal ainda demore algum tempo. Mas o facto de terem bastado meros segundos de quebra de tensão para que a Península Ibérica ficasse às escuras, ainda que de dia, mostra apenas uma coisa: a enorme fragilidade das redes. Logo, da nossa vida em sociedade. Num instante milhões de pessoas ficaram impossibilitadas de prosseguir o seu dia a dia. Metros e comboios pararam. Passageiros que se preparavam para embarcar em aviões ficaram em terra. Nos hospitais foram canceladas cirurgias, consultas e atendimentos, enquanto se ligavam geradores de capacidade limitada e, provavelmente, sem o combustível necessário para aguentar mais do que um par de horas sem eletricidade. Nas ruas os semáforos pararam, o trânsito ficou caótico com os muitos milhares que, sem poderem trabalhar, regressaram a casa. Com o passar das horas as antenas de telecomunicações deixaram também de funcionar temporariamente, fosse pela poupança ou pela falta de energia. Os mercados financeiros pararam, tal como as transações ou o simples levantamento de dinheiro em numerário.
Com o início da guerra na Ucrânia falámos muito na segurança energética. Mas as discussões centraram-se sobretudo na produção e no abastecimento de petróleo e gás natural. Já a distribuição de energia elétrica, de que Portugal e Espanha são produtores dado o crescimento e preponderância das renováveis, ficou mais escondida na discussão. Ora o fornecimento estável e contínuo de energia elétrica está na base do funcionamento das nossas sociedades. É através dela que acedemos à informação, contactamos amigos e familiares, trabalhamos, iluminamos edifícios, carregamos aparelhos elétricos e, cada vez mais, nos deslocamos. A forma como foi possível esse fluxo ser quebrado põe em causa esse funcionamento. Para já, ela merece reflexão – e depois ação.
A quebra, que na prática durou apenas uma dezena de horas e foi resolvida de forma competente pelos técnicos da REN – Rede Elétrica Nacional, mostra que nenhuma nação se pode considerar energeticamente segura se estiver isolada. Uma maior conexão torna as redes mais resistentes. Uma maior interdependência poderá ajudar não só a resistir mas também a recuperar de imprevistos. No quadro da União Europeia, isso significa que essa segurança energética, mais do que nacional, deve ser considerada uma prioridade verdadeiramente europeia.
É nesse contexto que é cada vez menos compreensível que a Península Ibérica continue a ser uma espécie de ‘ilha energética na Europa’. A oposição do Governo francês à construção de ligações entre Portugal e Espanha e a Europa só faz sentido na ótica individualista de quem olha para a União Europeia e o mercado comum como um instrumento ao serviço dos seus próprios interesses, em vez de um mecanismo que deve contribuir para o bem de todos: social, político e económico.
Por outro lado, o apagão mostra que em paralelo com a aposta nas energias renováveis, é necessário investimento para modernizar e fortalecer a rede de distribuição elétrica. Em simultâneo, há que garantir, além da autonomia de produção, a capacidade de arranque que proporcione estabilidade em caso de emergência. Que o incidente de segunda-feira, de que felizmente saímos sem estragos de maior, sirva para tornar a segurança energética uma prioridade no país e, assim, fortalecer a nossa vida em sociedade.
O apagão marcou também uma das primeiras vezes em que a sociedade portuguesa foi alvo de uma campanha de desinformação de contornos profissionais e, provavelmente, internacionais. A divulgação de uma suposta notícia da CNN Internacional a atribuir a responsabilidade pelo colapso dos sistemas elétricos a hackers russos, menos de uma hora após o incidente, mostra um nível de profissionalismo na disseminação de desinformação num nível até agora nunca visto. Outras informações falsas foram postas a circular, mas nenhuma com o grau de detalhe da que, falsamente, citava um conhecido órgão de comunicação social mundial e a própria presidente da Comissão Europeia. O seu objetivo seria espalhar o pânico e, quem sabe, influenciar opiniões.
Faz por isso todo o sentido que o Sistema de Informações da República Portuguesa, através do Serviço de Informações de Segurança, tente apurar, recorrendo aos meios próprios e à ajuda dos países aliados, a origem dessa campanha de desinformação. Desde o início da guerra da Ucrânia que a deteção de redes e grupos que se dedicam a espalhar falsas informações sobre o conflito ou sobre a situação interna de vários países – especialmente em tempo de eleições – tem sido uma prioridade das forças e serviços de segurança europeus. Várias campanhas foram desmanteladas nos últimos anos pelas próprias redes sociais. Mas a identificação das ameaças contra o Estado é uma das funções dos serviços de informações. A desinformação, especialmente no que diz respeito a temas sensíveis como a defesa e a segurança do país, é uma dessas ameaças. A investigação até pode cair num beco sem saída. Mas há que elogiar a iniciativa de quem decidiu atuar em vez de deixar o tema cair no esquecimento.