O Matuto e a Mudança

É um vírus, um vício sem cura. Coisa irritante. Duma grande falta de chá. O Matuto prefere o agasalho das rotinas e das ideias conservadoras, mesmo que ligeiramente puídas.

O Matuto tem uma verdadeira aversão à mudança. O Óscar – o lagarto residente da ‘Casa das Pontes’ – exibe uma atitude semelhante. Todas as manhãs espreguiça-se no mesmo muro do jardim, à mesma hora e na mesma posição de adoração ao sol. O Matuto leva o seu chá para o jardim, e os dois, hominídeo e réptil, apreciam a amenidade do clima. Estas rotinas na ‘Casa das Pontes’ são um regalo para o Matuto e preenchem até à plenitude a sua alma. O Óscar, sabendo destas coisas, junta-se ao ritual, pontualmente que nem um relógio Suíço. O Matuto sempre suspeitou da “mudança”. Era Mozart que afirmava “è sempre bene il sospetare um poco in questo mondo” – é sempre bom suspeitar um pouco, neste mundo. (Mozart, in Così fan Tutte – todas fazem o mesmo) Naturalmente que Mozart referia-se às atitudes frívolas das mulheres nas questões amorosas. Todavia, para o Matuto, esta postura é transversal.

Por exemplo, a noite de consoada, para o Matuto, pede uma boa posta de bacalhau e umas couves Portuguesas tenras regadas a azeite. Depois o bolo rei, e no dia seguinte “roupa velha”. Nada dessas modernices de carne assada, peru recheado e panetone.

A hostilidade em relação à “mudança” revela-se em certas minudências. Nos talheres que o Matuto usa; nas facas de cozinha; no almoço de Sábado; no bolo de baunilha do Harmonie Sucré; no pão molhado no molho da salada; na camisa xadrez; nas calças chino; nas músicas veneradas (Frank Sinatra, Billie Holliday, Gordon Lightfoot, Sarah Vaughan, Aznavour, Leonard Cohen); no whiskey vespertino; no queijo brie; no chá Earl Grey, com um farrapinho de leite; nos recortes de jornais antigos; na insistência dos vinis e CD’s; e, na biblioteca… Ah, a biblioteca! Essa enseada amena. As andanças do Matuto confinam-se muito à biblioteca. E nisto o Matuto também é um conservador. Roger Scruton dizia que “o conservador partilha uma ideia com todas as pessoas maduras: o sentimento de que o Belo é facilmente destruído, mas dificilmente construído”. Para o Matuto a beleza habita corpóreamente numa biblioteca, construída com a paciência dum monge tibetano.

Ora, acontece que o Matuto conserva uns hábitos muito peculiares de arrumação da sua biblioteca. José Cardoso Pires e António Lobo Antunes ficam lado a lado, tal como na vida. Abeleira estaciona longe de Fernando Namora, como ditam as más-línguas; e Vergílio Ferreira fica num espaço só seu. Os clássicos Ingleses andam pelas estantes à rédea solta. Já a Lídia Jorge estava até há meses distante dos cronistas (paixão do Matuto), dada o facto da escritora algarvia se engalfinhar frequentemente com uma cronista também algarvia. Entretanto, Lídia Jorge escreveu um belíssimo livro de crónicas, “Em Todos os Sentidos”, e as arrumações briguentas fizeram as pazes. A secção de Teologia – outra paixão do Matuto – ocupa um lugar nobre altaneiro. A filosofia fica mais rente ao chão. Entretanto, os policiais têm um armário só para eles. O Sr. Francisco e a Dona Lena – cuidadores da limpeza e da funcionalidade da ‘Casa das Pontes’ – emprestam um ar mais cordato e disciplinado, à biblioteca do Matuto. Todavia, nada vislumbram desta catalogação nefelibata. E, quando Paul Auster viaja sorrateiro para junto de Philip Roth (por acção magnética do Sr. Francisco ou de Dona Lena, o Matuto acha que é o destino a dar uma mãozinha – ou então será uma traquinice literária.

Por estes dias, os políticos andam por aí aos magotes apelando à mudança. Não há político que não grite (e como gritam) pela “mudança”. Esta insistência na “mudança” é uma maçada – pondera o Matuto. É um vírus, um vício sem cura. Coisa irritante. Duma grande falta de chá. O Matuto prefere o agasalho das rotinas e das ideias conservadoras, mesmo que ligeiramente puídas.

Em matéria de “mudança” e decoração a gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, é uma especialista. Há tempos, Dona Sirlei, veio com uma história de “feng shui” que parece ser uma ciência exacta de como arrumar quinquilharia Japonesa. O Matuto não fez caso porque não vê razão para entregar a geografia caótica do seu conservadorismo à ciência exacta do progresso bacoco. Respaldado nas suas convicções, nesta era de pós-verdade, o Matuto resiste a essa ideia ameaçadora da “mudança”. Quanto muito, aceita um Bacalhau com Broa, no forno, na noite de consoada. O que passar disso são contrariedades e modernices. Meras modernices – considera o Matuto.