Encontrado dentro de um livro de culinária chinesa

Henri Lecourt foi um cozinheiro francês que por volta de 1900 se estabeleceu em Tianjin. Casou-se com uma cozinheira chinesa e tornou-se membro da Ordem da Nuvem de Jade Verde

Eram quase horas de jantar e por algum motivo a conversa recaiu sobre restaurantes chineses. – A mim é que não me apanham lá. Desde que houve aquelas notícias há uns anos… – comentou uma das senhoras, com um esgar ostensivo de repugnância.

– A operação da ASAE, não foi? – perguntou alguém.

A brincar a brincar, já lá vão quase 20 anos que a autoridade da segurança alimentar entrou pelas cozinhas dos restaurantes chineses adentro e encontrou coisas verdadeiramente… de deixar os olhos em bico!

Eu próprio passei a ter sérias reservas, sobretudo desde aquele belo dia em que estava a servir-me de um chop suey e me apercebi de um pedaço de comida de uma cor diferente no meio dos legumes – uma vulgar tampa de garrafa, o que me levou a concluir rapidamente que parte da minha dose era proveniente dos restos de uma refeição anterior.

Mas essas reservas não são extensíveis à literatura.

A primeira coisaque me chamou a atenção naquela banca de livros baratos foi a capa um pouco folclórica, representando, vim a saber, o deus chinês do lar e da cozinha, Tsao Wang, com a sua mulher e criados, um cão e um galo, e um fogo aceso ao centro.

Trata-se de um clássico da culinária, La Cuisine Chinoise, de Henri Lecourt, cozinheiro francês que por volta de 1900 se estabeleceu em Tianjin. Casou-se com uma cozinheira chinesa e tornou-se membro da Ordem da Nuvem de Jade Verde (agora percebo a razão de ser da cercadura de nuvens a pairar sobre um fundo verde e não azul).

Se esta fosse a edição original publicada em Pequim em 1925 valeria uma pequena fortuna, mas mesmo sendo uma edição facsimilada posterior, de 1968, possui algum valor.

O livro contém 243 receitas, entre as quais iguarias como tendões de pés de porco com molho, bolinhos de carne com oito perfumes, estufado de tartaruga e línguas de porco fumadas. A receita de barbatanas de tubarão inclui como ingrediente uma libra (cerca de meio quilo)de lábios de peixe. Também há explicações sobre os utensílios e sobre a melhor maneira de sentar os convivas à mesa (sempre redonda).

Mas o meu exemplar continha ainda outro segredo. Dissimulado entre a capa e a folha de guarda, descobri um curioso datiloscrito de uma página intitulado ‘A síndroma dos restaurantes chineses’. Começa assim:«Os médicos americanos denunciaram há três meses esta síndroma que, desde o seu aparecimento, suscitou uma abundante literatura que grassa, segundo eles, de Havai a Londres e de Paris a Honolulu sem poupar qualquer raça».

Segue-se o elenco dos sintomas. Pelos vistos houve situações graves:«Os jornais médicos relatam estados de trombose cerebral que se manifestaram algumas horas depois de o indivíduo ter feito uma refeição chinesa». Depois de referir que se suspeita de «um peixe chinês que talvez contenha uma neurotoxina», termina de forma inconclusiva:«Oinquérito continua aberto…».

As semelhanças com o relatório de um crime saltam à vista. Quem será o culpado? O tal peixe tóxico? O molho de soja? Os «cogumelos de efeito muscardínico»?

Convenhamos que este datiloscrito não constitui o aperitivo ideal. E eu que já ia todo lançado para preparar o estufado de tartaruga e as barbatanas de tubarão temperadas com lábios de peixe.