O Matuto e as Madalenas de Proust

O Matuto sabe de fonte segura que os estudiosos chamam a este fenómeno de “memória involuntária” porque se refere à capacidade do cérebro em acessar lembranças sem esforço aparente.

O Matuto tem muitas “madalenas de Proust”. Na realidade, todos temos as nossas “madalenas de Proust – pontua o Matuto. “Que é isso” – a gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, já reagiu – “Quem são essas Madalenas!?” Alto e aí pára o baile! Nada a ver com mulheres – esclarece lestamente o Matuto.

O Matuto explica: No primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust relata, como o sabor duma “madalena” – bolinho em forma de vieira, à base de manteiga derretida e raspas de limão – embebida em chá o transporta, de forma quase mágica, para a sua infância em Combray. Através de uma experiência trivial – o gosto duma madalena mergulhada em chá – o autor ilustra como os sentidos têm o poder de evocar lembranças que estavam soterradas no subconsciente. O Matuto sabe de fonte segura que os estudiosos chamam a este fenómeno de “memória involuntária” porque se refere à capacidade do cérebro em acessar lembranças sem esforço aparente. Contrapondo-se à memória voluntária, que exige concentração.

O Matuto não resiste a transcrever essa parte luminosa da obra-prima de Proust: “Ela então mandou buscar um desses bolos pequenos e roliços chamados “madalenas”, que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E logo, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e a perspectiva dum dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com as migalhas do bolo, me tocou no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente, se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significaria? Onde apreendê-Ia? … E de súbito a lembrança surgiu-me. Aquele gosto era o do pedacinho de madelena que minha tia Léonie me dava aos domingos pela manhã em Combray (porque nesse dia eu não saía antes da hora da missa), quando lhe ia dar os bons-dias ao quarto, depois de mergulhá-lo na sua infusão de chá ou de tília. … tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá”. (in, “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, Edições Relógio de Água – tradução de Pedro Tamen, pg. 52 e 54)

Ora, na memória olfactiva e gustativa do Matuto habitam imagens da Vó Guida… e o seu bolo de cenoura. Era o Matuto apenas um Matutinho, um pirralho portanto, quando a Vó Guida fazia o seu famoso bolo de cenoura, molhado, molhadinho. O Matutinho deliciava-se com aquela textura. Declinava o dia e quedava-se a noite, lá fora o frio era um açoite… E a Vó Guida chegava envolta em panos e sacos de plástico. Os risos à mesa, a estridência dos talheres, o aroma do café Mokambo

Cada vez que o Matuto vê ou cheira um bolo caseiro, ele é imediatamente transportado para aquele momento de infância… E até Dona Sirlei ajuda nesta “memória involuntária” ao fazer, muito voluntariamente, um belíssimo bolo de chocolate que preenche com o seu aroma todos os cantos da “Casa das Pontes”. Será ingerido, mergulhado, ensopado, bem molhado, num chá preto, à Inglesa, com um farrapinho de leite – revela o Matuto.