Ele fez fotografias cheias de ar e fogo, tinha um olhar como um imenso promontório, com uma inclinação brutal, e em tantas das suas imagens tudo parece refeito, ganhando uma respiração épica, escorrendo veneno, exaltando aspectos sórdidos com um brilho de mel inquieto, para nos servirmos da compulsão de imagens paralelas de Herberto Helder. Sebastião Salgado tinha esse talento que o tornava capaz de, numa fracção de segundo, reter o mundo, traduzindo uma impressão que se deslocava do que tinha diante da sua lente, e, muitas vezes, sentimos que o que esta capta é uma distância imensa que ia ao ponto de reconfigurar os elementos, num apelo de ordem cinemática, que produz um tal assombro que chega a violar inteiramente o suposto propósito documental daquelas imagens. Isto não o impediu de se tornar um dos mais aclamados repórteres fotográficos de sempre, mesmo se aquele acabava por ser um universo autorreferencial, pois, como ele mesmo reconheceu, a sua fotografia transmitia a impressão que o mundo começou por lhe causar quando o descobriu. Tendo afirmado que sempre tivera “a sensação de ter crescido no paraíso”, na sua autobiografia – Da minha terra à Terra –, Salgado explica como a luz natural e as montanhas de Minas Gerais definiram o seu modo de ver. “Na estação das chuvas, quando tempestades fenomenais começam a se armar, o céu fica cheio de nuvens. Nasci com imagens de céus carregados atravessados por raios de luz. Essas luzes entraram em minhas imagens. De fato, vivi dentro delas antes de começar a produzi-las. Também cresci em meio à contraluz: quando era garoto, para proteger a pele clara, sempre me colocavam um chapéu na cabeça ou me instalavam embaixo de uma árvore. Na época, não existia protetor solar. E eu sempre via meu pai vindo até mim sob o sol, na contraluz”. Em várias entrevistas, viria a referir o seu espanto quando outros comentaram a sua fotografia notando essa estratégia do plano em contraluz, e foi sempre frisando a importâncias das suas origens, e em conversa com Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, que assinou um dos textos do catálogo da Territoires et Vies, uma exposição realizada em Paris em 2005, este deu-se conta de que o período de Salgado em Aimorés, onde nasceu a 8 de fevereiro de 1944, terá sido o período fundamental da formação. Foi ali que contactou com a iconografia cristã e a linguagem clássica do fotojornalismo da primeira metade do século XX, através das revistas Cruzeiro e Manchete, que reproduziam as imagens dos principais fotojornalistas daquela época. “O simbolismo religioso é muito presente. Salgado menciona que ficava à porta das igrejas católicas da região. Ele admite ter herdado a cultura barroca”, diz Andrade.
Da morte dele, na sexta-feira passada, aos 81 anos, já a todos foi chegando a notícia. A notícia foi avançada pelo Instituto Terra, a organização ambiental sem fins lucrativos que ele e a mulher fundaram em Minas Gerais. A leucemia foi apontada como a causa da morte, tendo a família lembrado como ele desenvolvera a doença após contrair um tipo particular de malária em 2010, enquanto trabalhava num projecto fotográfico na Indonésia. “Sebastião foi muito mais do que um dos maiores fotógrafos de nosso tempo. Ao lado de sua companheira de vida, Lélia Deluiz Wanick Salgado, semeou esperança onde havia devastação e fez florescer a ideia de que a restauração ambiental é também um gesto profundo de amor pela humanidade. Sua lente revelou o mundo e suas contradições; sua vida, o poder da ação transformadora”, lê-se na nota de pesar.
O termo “contradições” é crucial no percurso de Salgado, uma vez que a sua fotografia acabou em muitos momentos enredada nalguns dos dilemas centrais ao representar quadros de conflito, miséria e exploração humana e não só. Após a sua ascensão meteórica ao primeiro plano do mundo do fotojornalismo, na década de 1980, ele foi recorrentemente alvo de sérias críticas por fornecer imagens onde o que sobressaía era antes de mais uma espécie de deslumbramento com os elementos estéticos, que acabavam por absorver inteiramente o que quer que a sua lente captasse, de tal modo que, tantas vezes, mesmo situações aflitivas ganhavam uma harmonia, um efeito de gloss, como se a distância a partir do qual olhávamos aquelas figuras fosse ainda um elemento suplementar na forma de obter deleite do seu sofrimento. Foram vários os críticos que deram conta dessa “estetização do sofrimento”, tendo tido particular repercussão ensaios de autores norte-americanos, entre eles Susan Sontag, Martha Rosler, Allan Sekula e Abigail Solomon-Godeau, que assinalavam uma espécie de crueldade que se percebia ao raspar de leve a pátina esperançosa com que Salgado construiu a sua intervenção, reclamando a possibilidade de os seus retratos poderem dar voz e dignidade a crianças refugiadas, pessoas famintas, trabalhadores sem terra e indígenas depauperados. Ingrid Sischy assinou um dos ataques mais ferozes à fotografia de Salgado, num artigo publicado em 1991 pela The New Yorker com o título “Boas intenções”, acusando-o de estar obcecado com a composição das suas fotografias, interessando-lhe, acima de tudo, achar “a graça” e “a beleza” nas “formas distorcidas dos seus retratados em agonia”.
Mesmo os seus admiradores reconheciam que havia algo de contraditório num marxista que aceitava dinheiro de empresas privadas para financiar a própria produção fotográfica. Se Génesis foi o seu projecto expositivo mais ambicioso, retratando regiões do planeta onde há ainda sinais de uma natureza a salvo da exploração industrial e povoações indígenas isoladas da civilização, procurando assim alertar para o problema do aquecimento global, tanto a exposição, que esteve em vários países e alcançou uma visibilidade inaudita (mais de 2,5 milhões de visitantes), como o livro contaram com o patrocínio da companhia mineira Vale do Rio Doce. Ao mesmo tempo, Salgado e Lélia conceberam o Instituto Terra, um projecto ambiental apoiado por esta mesma companhia e de outras grandes empresas, como a cosmética brasileira Natura, e de fundações privadas francesas, como Nature & Découverte, Yves Rocher, Aventis Pasteur ou Anne Fontaine. Assim, o imenso sucesso daquela organização que plantou milhões de árvores no seu esforço de reflorestação da mata atlântica na fazenda da família, em Aimorés, não deixa de sinalizar um certo impasse, uma vez que parece só ser possível essa sua “utopia feita realidade”, valendo-se de uma série de entidades que lucram com a devastação dos ecossistemas. Como assinalava Parvati Nair, autora de A Different Light: The Photography of Sebastião Salgado (2012): “Salgado usa a fotografia para promover a sua visão de mundo, que é planetária e panorâmica. E o resultado é o seguinte: o maior crítico dos impasses globais gera lucro.”
De algum modo, desde que este economista que, em 1973, aos 29 anos, quando vivia radicado em Paris, decidiu tornar-se fotógrafo, o seu percurso rumo à consagração como fotógrafo global sempre deixou um rastro um tanto insólito, às vezes expondo o flanco e revelando uma certa hipocrisia. Este militante de esquerda que aderiu à Ação Popular, e que, em 1968, ainda trabalhou no Ministério da Economia durante a ditadura militar brasileira, mudou-se de São Paulo para a Europa, pois receava que ele e a mulher, que se tinham conhecido na faculdade, viessem a ser perseguidos pela ditadura. “Participamos de todas as manifestações e de todas as ações de resistência à ditadura e estávamos, ao lado de nossos camaradas, ferozmente determinados a defender nossas ideias. Isso era muito perigoso, claro. Nosso grupo decidiu que os mais jovens, dos quais fazíamos parte, deviam ir para o exterior para se formar e continuar agindo de lá, enquanto os que tivessem mais maturidade entrariam para a clandestinidade”, conta Salgado na sua autobiografia. Mesmo depois de construir para si uma posição imensamente favorável, de ter passado por três das mais prestigiadas agências de fotografia do mundo – Sygma, Gamma e Magnum –, antes de fundar a Amazonas Images, em Paris, em 1994, e de ter realizado uma série de trabalhos publicitários para empresas como Silk Cut (uma tabaqueira), Le Creuset, Volvo e Illy, continuou sempre a reconhecer que aquilo que o movia era a devastação planterária e os problemas socioeconómicos… “Deveríamos admitir que a sociedade de consumo da qual participamos explora e pauperiza enormemente os habitantes do planeta”, assinala na autobiografia. E sem nunca reconhecer estas contradições, como vincou Nair, Salgado procurou aliar os seus ideais de esquerda e valores éticos com as vantagens dos compromissos comerciais. “Ao fazê-lo, contudo, ele implica a sua obra no contexto capitalista que procura criticar.”
Outros preferem destacar a devoção de Salgado às realidades que procurava retratar, tendo trabalhado em mais de 120 países, procurando sempre fazer avultar a origem em comum à natureza, aos animais e aos homens, e a dignidade que lhes é própria. No entender da jornalista Susie Linfield, sendo um romântico, a abordagem de Salgado é muitas vezes reverente em relação ao que ele fotografa. “As suas imagens a preto e branco são compostas com grande minúcia, são dramaticamente teatrais e apresentam um uso da luz semelhante ao da pintura”. Por sua vez, Fred Ritchin, responsável pela organização do catálogo da exposição de Salgado no Museu de Arte Moderna de São Francisco, em 1990, definiu-o como um fotojornalista “sentimental, nostálgico, heroico, lírico”.
Poderíamos assinalar como mesmo “os sentimentos são históricos”, como refere o poeta Paulo Leminski, são padrões, e podem entrar na moda, marcar épocas, momentos e circunstâncias históricas. Assim, podemos encarar esse arrebatamento que toma conta da fotografia deste romântico, que entende que há um conteúdo emocional que é importante elaborar, em vez de narrar visualmente tudo naquele tom seco, ficando-se pela elipse, sem propor esse drama ou intensidade daquelas pessoas cuja imagem ele não roubava, fazendo sempre questão de se apresentar, de passar longas temporadas em cada lugar, dar-se tempo para que fosse possível gerar-se alguma convivência e confiança. Na autobiografia, Salgado explica deste modo a sua abordagem: “Sempre fui capaz de colocar minhas imagens dentro de uma visão histórica e sociológica”. Se a fotografia é “uma escrita”, Salgado acredita que, com ela, realiza algo comum a todos os fotógrafos: “Fotografo em função de mim mesmo, daquilo que me passa pela cabeça, daquilo que estou vivendo e pensando”.
Um dos grandes tributos que lhe foi prestado veio da pena do escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano, autor de um dos textos de An Uncertain Grace, o catálogo da exposição organizada por Ritchin em 1990. “Salgado fotografa pessoas. Fotógrafos casuais fotografam fantasmas”, escreveu Galeano. “Como um produto de consumo, a pobreza é uma fonte de prazer mórbido e de muito dinheiro. A pobreza viu-se transformada noutra mercadoria para consumo alheio e alcança um preço elevado no mercado de luxo. Fotógrafos da sociedade de consumo aproximam-se, mas nunca entram. Fazem visitas apressadas a cenários de desespero ou violência, descem do avião ou do helicóptero, disparam a câmara, explodem o flash: registam e fogem. Olham sem ver, e as suas imagens não dizem nada. As suas fotografias covardemente manchadas de horror e de sangue podem extrair algumas lágrimas de crocodilo, algumas moedas, uma ou duas palavras hipócritas dos privilegiados deste mundo, mas nada disso muda a ordem do seu universo.”
Contudo, mesmo Parvati Nair, que se confessa uma “defensora militante da beleza, da retórica e do barroquismo da sua fotografia”, se reconheceu que no arco da carreira de Salgado houve sempre um esforço de procurar entender como a modernidade promoveu a dissociação entre o ser humano e a natureza, em Génesis mostrou-se incomodada com a semelhança entre as suas imagens e as fotografias que marcaram a abordagem característica do início da antropologia, no século XIX, que participava, então, num projecto eurocêntrico e colonizador. Assim, para esta autora a mais conhecida exposição de Salgado deixa “uma sensação de que os índios são um povo exótico de um lugar distante”.
Na sua autobiografia, Salgado procurou explicar de outra maneira essa ênfase: “O homem das origens é muito forte e muito rico em algo que fomos perdendo com o tempo, tornando-nos urbanos: nosso instinto. Esse instinto permite sentir e prever muitas coisas, uma mudança de temperatura ou fenômenos climáticos, por meio da observação do comportamento dos animais. Na verdade, estamos abandonando o nosso planeta, por que a cidade é outro planeta.”
De resto, nos depoimentos recolhidos documentário O sal da Terra (2014), co-realizado pelo seu filho Juliano Ribeiro Salgado e pelo cineasta alemão Wim Wenders, ele prefere reconhecer como suas principais influências as obras de Dante Alighieri, Lewis Carroll e O diário do Beagle (1839) de Darwin, deixando claro que são os diversos modos da viagem que lhe importam, seja interior e espiritual, ou onírico e através dos reinos de fantasia, seja na exploração do mundo natural, o seu ensejo parece ser o de produzir uma deslocação na sensibilidade, como se reconhecesse que o homem nunca capta verdadeiramente uma imagem real, mas apenas um reflexo que só lhe revela algo decisivo a partir do momento em que consiga perturbá-lo, gerar naquele que olha uma emoção. De resto, justificando a provocadora justaposição de indígenas e animais, ele explicou que queria precisamente colocar todos os elementos da criação ao mesmo nível, e que esse olhar que nasce ainda incapaz de traçar distinções pode ser ainda o que nos salva. Foi a sua forma de se libertar da desolação que tomou conta dele ao cobrir o genocídio em Ruanda, em 1994, tendo deixado claro que o pessimismo ficaria com ele até ao fim. “Acho que a humanidade é uma espécie sem saída. Não somos uma espécie sustentável, destruímos tudo à nossa volta ao ponto de haver lugares onde já não é possível viver por causa da nossa destruição. A única espécie realmente predadora somos nós”, disse em entrevista ao Público.
Podemos assumir uma perspectiva furiosamente crítica em relação ao seu trabalho, podemos rejeitar o fulgor intoxicante das suas fotografias, aquele modo de trabalhar o contraste que causa um enlevo de tal ordem que nos deixa encadeados, apreciando aquelas cenas terríficas com uma perniciosa sensação de deleite, mas o certo é que são imagens que se gravam na película da memória, ficam connosco por tempo suficiente para nos causarem uma forte impressão, do deslumbramento ao asco. Se ele foi acusado de ser sentimental, de nos fornecer ícones a partir de situações de verdadeira desgraça humana, se Sischy denunciou estas fotografias “cuidadosamente compostas à semelhança de naturezas-mortas”, a duração significa uma sobrevida, uma possibilidade de transtorno e de revolta. Isso só acontece quando uma imagem fica tempo suficiente connosco. E esse é inegavelmente o triunfo de muitas das fotografias de Sebastião Salgado. É impossível apagar da memória a impressão que nos causam as imagens dos trabalhadores como formigas numa mina de ouro no estado do Pará, no norte do Brasil, em 1986. É certo que há alguma beleza, mas também ela não deixa de ser atroz, e o brilho dos contornos, como de uma camada extra de suor e exasperação, grita passados todos estes anos. E aquelas figuras esfaimadas na Etiópia, em 1980. Mesmo aí a beleza parece apenas um convite, uma sedução que nos faz demorar o olhar até que um detalhe, uma expressão nos atravesse a carne e fique ali, alojada como um estilhaço vivo, a roer. Se há algo de obsceno na espectacularidade das imagens dos poços de petróleo a arder no Kuwait, em 1991, precisamos então de obter alguma informação para perceber o contexto, e vamos por nós fazer esse esforço de reconhecimento de incidentes que, afinal, em retrospectiva, conferem ao nosso tempo a sua tumultuosa feição épica. Talvez Salgado reclame, assim, essa dignidade que é própria de quem vê diferentes cenas em busca da sua qualidade mítica. E se Sischy parece segura de que “o embelezamento da tragédia resulta em imagens que, ao fim e ao cabo, reforçam a nossa passividade em relação à experiência que elas revelam”, e que esta “estetização da tragédia é o caminho mais rápido para anestesiar os sentimentos daqueles que a testemunham”, talvez o seu juízo seja apressado. De algum modo os críticos de Salgado parecem estar enfeitiçados pela realidade, e não chegam a compreender a forma como os mitos operam, num nível menos racional, mais fundo, deixando marcas que chegam ao inconsciente. Sischy entende que o fotógrafo brasileiro nos captura e consegue o pasmo, em vez de nos coagir à acção. Mas a pergunta óbvia será então: e que acção? Que acção poderia satisfazê-los?
Se Walter Benjamin denunciou a forma como certos fotógrafos influentes tinham adquirido o hábito de arrancar as suas fotografias como flores a partir da miséria humana, transformando-a num produto de consumo”, se ele cunhou o termo Nova Objectividade para se referir a essa forma de decomposição que as imagens permitem, e que “modifica a luta política a ponto de ela deixar de ser um motivo para a tomada de decisão e se tornar um objecto confortável de contemplação”, seria demasiado fácil fingir que as fotografias de Sebastião Salgado se cingem a este efeito de contrafacção luxuriante.
É verdade que o seu trabalho arrisca muito. Mas a beleza não é tão inofensiva como estes críticos fazem parecer. Há nela um elemento tenebroso, que urde uma outra duração, um fascínio e uma sedução capazes de mergulhar mais tarde nas nossas próprias imagens interiores e causar um estremeção.
Susan Sontag não lhe deu a menor hipótese. Mas a força implacável do seu juízo não nos desanima, antes torna mais poderoso o efeito de contemplação daquelas fotografias. Quando ela caracteriza Salgado como um “fotógrafo especializado na miséria do mundo (incluindo, mas não se limitando aos efeitos da guerra)”, quando elege como “o principal alvo da nova campanha contra a inautenticidade do belo”, o nosso olhar volta a olhar as fotografias dele com uma disposição quase colérica, pois sabemos que a acusação, em parte, é justa. Mas ainda que a outra parte seja menor, seja ínfima, o olhar tem uma fome que supera qualquer juízo demasiado definitivo. E apesar de toda a retórica meio untuosa de que se fazem acompanhar, apesar do brilho pirosa que as torna dignas de ilustrar as capas de revistas como a National Geographic e outras publicações imensamente presunçosas e adaptadas ao gosto pelo exótico, aquelas fotografias são um pouco melhores do que isso. Desde logo, se a composição estética parece saturar-nos, o que é que explica que continuem vivas? Referir o seu efeito cinemático é também reconhecer como se movem… É um olhar mítico, aquele.
E esse era o entusiasmo daquele miúdo que precisava de olhar o mundo a partir das sombras. Que encarava os perfis recortados em contraluz. “O nosso planeta é de uma beleza, de uma vastidão, de uma vivacidade… Tudo é vivo”, notava ele, em 2015, na entrevista ao Público, recordando como, ao longo dos oito anos que precisou para preparar Génesis, e nos 30 países que percorreu, esse mesmo fascínio se renovou, apesar de tudo o que tinha visto já, de toda a penúria e predação humana. “Havia montanhas que imaginava mortas, mas elas são mais vivas do que eu (…). Montanhas jovens, a crescer, ou velhas, a erodir e a renascer. Estive em cima de rochas que tinham um dia de existência. Tive de levantar um pé e pousar o outro por causa da temperatura com que vinham dos vulcões.”
Face a isto os seus críticos só tem razão. Estão certos no que dizem sobre aquelas fotografias. Susan Sontag está coberta de razão ao assinalar como, para lá das situações altamente comerciais em que estas retratam a miséria humana, o problema está nas fotografias em si mesmas, mas engana-se quando nos diz que estas são impotentes. São-no apenas no sentido em que não compelem transformações políticas ou sociais, não estão na origem de levantamentos nem denúncias que sacudiram esta ou aquela região. E também é certo que os retratados nunca são nomeados. Sontag tem toda a razão quando nos diz que “um retrato que se recusa a nomear o seu sujeito se torna cúmplice, ainda que inadvertidamente, do culto da celebridade que alimentou um apetite insaciável pelo tipo oposto de fotografia: conceder apenas aos famosos os seus nomes despromove os restantes a instâncias representativas das suas ocupações, das suas etnias, das suas dificuldades”. E, no entanto, estas fotografias transformam aquelas figuras em arquétipos, dão-lhes um contorno que é próprio das figuras das lendas, desses grandes personagens que povoam as tradições orais. São de facto figuras trágicas. E como Sontag deveria saber, a tragédia ensina o homem a lidar com a sua impotência, alivia-o no sentido de reconhecer que “os sofrimentos e infortúnios são demasiado vastos, demasiado irrevogáveis, demasiado épicos para serem alterados por qualquer intervenção política local”. Talvez faça parte de um excesso de voluntarismo crítico exigir sempre um compromisso com a realidade, uma compreensão de que o único plano que importa é o concreto, que fornece à política e à história os seus termos. Sontag parece nem supor que haja uma outra urgência, uma outra escala. A dignidade mítica, que faz do homem esse ser que se inventa a si mesmo, que nomeia as coisas para infligir golpes às distâncias mais absurdas, e superar as suas limitações, tudo isso parece escapar-lhe. Uma fotografia que se ponha a delirar a partir dos limites da observação mais directa, que faça apelo a uma ordem sobrenatural, tudo isso é indigno, tudo isso é uma forma de embriaguez lírica. Mas talvez os críticos não tenham ido ao ponto de supor que Salgado tenha tido o cuidado de mostrar aos retratados aquelas fotografias. Talvez estes ficassem horrorizados por imagens que os reduzissem aos contornos frios que estão de acordo com a realidade como ela é, sem adornos, sem mistificações. Pode ser, no fundo, que esta tenha sido o maior dos triunfos da fotografia de Sebastião Salgado, a capacidade de devolver a crítica. A modernidade é em si mesma profundamente cínica, e entende a fotografia apenas como um meio técnico, como uma forma de reproduzir tal e qual a realidade. E se alguns olham para aquelas fotografias e apenas vêem a manipulação e a forma como esta explora sentimentos (pena, compaixão, indignação), quando o repórter deve antes ser clínico, desapaixonado, frio, talvez Salgado, em vez de um ponto final, possa deixar uma interjeição seguida de um ponto de exclamação: e as magias?