Unanimidade e falta de debate

O apoio unânime a José Luís Carneiro aparenta ter sido cozinhado nos bastidores por uma oligarquia que comanda os destinos do PS em função dos seus interesses pessoais mas que é apresentada como uma necessidade: a de mostrar unidade antes das eleições autárquicas.

Há cerca de um ano o Partido Democrata americano foi confrontado com uma enorme crise política. O Presidente e candidato às eleições de novembro de 2024 percebeu, finalmente, que não estava em condições de enfrentar Donald Trump e abandonou a corrida eleitoral. Nessa altura, entraram em confronto duas correntes opostas no que diz respeito à escolha do sucessor e líder do partido: uma que defendia uma convenção aberta, com debate entre adversários e a escolha do líder pelos congressistas; outra que preferia uma demonstração de unidade em torno de uma única candidatura, com o argumento de que não havia tempo para fazer de outra forma dada a proximidade da convenção e das eleições.

Como é bem sabido, a segunda opção venceu e o partido – com todas as suas divergências internas – uniu-se em torno de uma candidata que quatro anos antes tinha sido derrotada copiosamente por Joe Biden nas primárias democratas. Kamala Harris, então vice-presidente, tornou-se líder do Partido Democrata e a escolhida para enfrentar Donald Trump. E, mais uma vez, sofreu uma derrota em toda a linha, com o Republicano a conquistar uma enorme maioria, na votação popular e no colégio eleitoral.

Mesmo tendo ocorrido do outro lado do Atlântico, o episódio assemelha-se em muito à estranha e praticamente unânime escolha de José Luís Carneiro como futuro secretário-geral do Partido Socialista. Há pouco mais de um ano, com a demissão de António Costa e legislativas no horizonte, o PS organizou eleições diretas que opuseram duas correntes no partido. Uma liderada por Pedro Nuno Santos, outra por José Luís Carneiro. O primeiro venceu confortavelmente com 60,9% dos votos e o apoio de quase todas as federações, do presidente do partido Carlos César e do secretário-geral da Juventude Socialista, Miguel Costa Matos. A linha política dominante no PS era claramente de esquerda, encostada aos partidos que formaram a ‘geringonça’. Já José Luís Carneiro ficou-se por uns modestos 37,7% dos votos.

Agora, perante a estrondosa derrota nas legislativas do passado dia 18 de maio, é para o candidato que obteve uma minoria dos votos, cuja visão para o PS e para o país foi derrotada internamente, que o partido se vira. Sem debate. Sem candidaturas alternativas. Foi um virar de agulha instantâneo, uma espécie de cata-vento partidário que mudou de posição porque os ventos sopram de outra direção. Mais do que isso. O apoio unânime a José Luís Carneiro aparenta ter sido cozinhado nos bastidores por uma oligarquia que comanda os destinos do PS – tal como no Partido Democrata americano – em função dos seus interesses pessoais mas que é apresentada como uma necessidade: a de mostrar unidade antes das eleições autárquicas.

Isso significa que a reflexão que muitos no PS pediram durante e após a noite eleitoral de 18 de maio nunca irá realizar-se. Com um líder eleito, não haverá espaço para discutir linhas programáticas ou reconhecer os erros do passado. O que não será uma novidade para o PS, o partido que nunca lidou, reconheceu ou discutiu os erros cometidos durante a liderança de José Sócrates. Pelo contrário: aqueles que estavam com o principal arguido da operação marquês continuaram no poder, perpetuando os seus cargos como deputados, ministros e eurodeputados, como se nunca tivessem feito parte do círculo de poder do socratismo.

O mesmo parece estar a acontecer agora. Aqueles que estiveram com Pedro Nuno Santos nos últimos anos, que o defenderam e às suas ideias com toda a convicção em jornais e televisões, preparam-se para agir como se nunca tivessem tido qualquer papel na deriva esquerdista do partido e para defender precisamente o contrário. Alguns têm feito pior e colocaram a circular que foi Pedro Nuno – e só ele – que levou o país para eleições uma vez que decidiu, sozinho e teimosamente, rejeitar a moção de confiança apresentada pelo Governo, contra os conselhos sábios de todos aqueles que o rodeavam e que previram que o resultado seria desastroso. Terão mantido o silêncio porque o partido precisava, mais uma vez, de unidade antes das eleições. Mas como se viu nos Estados Unidos, a unidade pode enganar alguns durante algum tempo, mas não engana todos durante todo o tempo.

José Luís Carneiro já teve diversas funções executivas. Foi presidente de Câmara, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas e ministro da Administração Interna do Governo de maioria absoluta de António Costa. É tido como um centrista do PS e representa uma linha com a qual a AD pode dialogar facilmente. Pode ter sido competente nos vários cargos que exerceu. Mas pode também ter uma certeza: assim que estiver na liderança do PS será rapidamente e em força atacado por ter sido o ministro que extinguiu o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e criou a AIMA, com todo o caos que se seguiu no que respeita à situação dos imigrantes em Portugal.