De vez em quando a generalidade da comunicação social portuguesa parece ser acometida por uma espécie de histeria coletiva que lhe apaga a memória, e que transforma aquilo que ocorre em determinado momento num fator absolutamente determinante da nossa vida em sociedade. Uma espécie de momento zero, em que o que está para trás não importa. Como se nada tivesse a acontecido até aos dias de hoje.
A atual discussão em torno da atividade de movimentos neonazis em Portugal parece ser mais um desses momentos. A generalidade do país pode estar distraída, mas os órgãos de comunicação social têm a obrigação de saber – ou de ter quem saiba – que as reuniões, eventos e manifestações destes grupos tem sido uma realidade, pelo menos nas duas últimas décadas. Várias ações têm sido reprimidas, os responsáveis por crimes ideológicos tem sido presos e condenados e as autoridades que os acompanham e monitorizam de forma permanente têm alertado sistematicamente para a sua atividade e evolução, cuja intensidade varia conforme alguns dos seus elementos estejam ou não em liberdade. Na verdade só fica surpreendido ou escandalizado quem anda muito distraído.
Basta fazer um breve exercício de memória. Em 2007 uma mega operação da Polícia Judiciária levou à detenção de cerca de 40 skinheads. No mesmo ano, outros dois homens foram presos pela PSP por vandalizarem o cemitério judeu em Lisboa. Em 2016, uma nova investida da Judiciária levou a buscas em Braga, Lisboa e Albufeira e à detenção de 27 membros dos Portugal Hammerskins por suspeitas de crimes de agressão, discriminação racial e tentativa de homicídio cometidos entre 2013 e 2015. Entre as vítimas estavam homossexuais, negros e elementos do PCP que saíam de um evento no coliseu dos recreios. Vinte e dois elementos seriam condenados a penas entre os seis meses e os nove anos de prisão.
Em simultâneo, anualmente, pelo menos desde 2006, as autoridades têm alertado para a existência, reorganização e crescimento destes grupos. Em 2020, por exemplo, lia-se no Relatório Anual de Segurança Interna relativo ao ano anterior que «em Portugal, a extrema-direita tem vindo a reorganizar-se, reciclando discurso, formando novas organizações e recrutando elementos junto de determinadas franjas sociais a que normalmente não acediam num passado não muito distante». No documento do ano anterior alertava-se que «a extrema-direita portuguesa continuou a aproximar-se das principais tendências europeias, na luta pela reconquista da Europa pelos europeus. Para além de intensificarem os contactos internacionais, estes extremistas desenvolveram um esforço de convergência dos seus diferentes setores (identitários, nacional-socialistas, skinheads), no sentido de promoverem, no plano político e meta-político, os seus objetivos» e acrescentava-se que a «violência permaneceu como um traço marcante da militância de extrema-direita, havendo registo de alguns incidentes, nomeadamente agressões a militantes antifascistas».
Portanto, esta não é uma novidade. É antes uma realidade constante nos últimos anos, para a qual as autoridades tem alertado e sobre a qual tem, quando se justifica, agido. Fazem-no quando ocorrem ações criminosas movidas pela ideologia, como o sejam ataques motivados pela raça ou credo. Sem esse fator ideológico, estamos perante crimes comuns – que também são cometidos por estes elementos neonazis, muitos ligados ao tráfico de armas, de droga e assaltos violentos.
Essa parece ser a diferença da agressão ao ator Adérito Lopes em comparação com eventos passados. Apesar de cometida por um elemento que pertencerá à chamada Associação Cultural Portugueses Primeiro, liderada por um conhecido neonazi, ela não terá sido ideologicamente motivada. É necessário estabelecer essa diferença para que se e quando ocorrerem novos ataques racistas eles não sejam desvalorizados pela banalização.
Esta agressão, grave e inaceitável, cometida por um racista acabou por misturar-se e ofuscar um ato realmente racista ocorrido numa cerimónia do 10 de junho: os insultos proferidos contra o sheik Munir, imã da mesquita de Lisboa, que há 25 anos participa no encontro de homenagem aos combatentes, em Belém. Munir tem sido um fator de estabilidade e um garante do equilíbrio na Comunidade Islâmica de Lisboa, prevenindo radicalismos como os que se encontram por essa Europa fora.
Não há lugar para discursos nem para atos de ódio na sociedade portuguesa. Todas as ações movidas por qualquer ideologia racista devem ser severamente punidas e as organizações que as defendem ilegalizadas e extintas, nos exatos termos da lei. Mas convém não deixar que a falta de memória apague a realidade nem o trabalho dos muitos que discretamente e em silêncio contribuem para a segurança da nossa sociedade.