O Matuto e o Football

No fundo, o football é mesmo isso: uma rasteira bem dada na previsão dos intelectuais.

O Matuto tem notado um incremento no entusiasmo futebolístico. Aqui, no Brasil, país que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio, os ardores por futebóis, são paixões que ardem a olhos vistos. Não há meias medidas. Não existem cautelas, nem caldos de galinha. É paixão sem freio. Sem filtros.

Na “Casa das Pontes” não se fala noutra coisa. “Eu acho que o Ancelotti fez bem em deixar de lado o Neymar. Esse cara só sabe rolar no gramado” – diz a Belinha, a visita conservadora das ‘Pontes’. O Marcello, a visita reacionária das ‘Pontes’, acrescenta: “mas o Italiano é um gentleman. Telefonou ao moço avisando que não o ia convocar para a selecção”. A admiração por tudo o que seja italiano, aqui no Brasil, é infinita e cega. Um dia, o Matuto caiu na asneira de dizer que a Itália era o “esgoto da Europa”. Foi xingado. Achincalhado. Picotado. Desmantelado. Trucidado. Obliterado. Aperreado. Acanalhado. Massacrado… e outras coisas letais acabadas em “ado”. Bom, mas adiante!

“Certo, mas nem sempre foi assim” – acautela o Sr. Rocha, ex engenheiro mecânico tornado especialista nas andanças anglófonas. O Sr. Rocha é a visita na “Casa das Pontes” que sempre coloca água na fervura. É a sensatez verbalizada. O cara que pega no cangote e cutuca a alma. “Numa crónica de 1921, Graciliano Ramos, o autor de Vidas Secas defendeu que o futebol era uma moda passageira que jamais pegaria no Brasil. Ele achava que o esporte não combinava com a personalidade ‘bronca’ do brasileiro” – conclui o Sr. Rocha. O Matuto fez uma rápida pesquisa e na verdade o escritor do Estado de Alagoas escreveu: “Mas por que o football? Não seria melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo? Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou não. No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá em casa. De outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece-nos que o football não se adapta a estas boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve”.*O escritor patriota ainda pediu aos jovens que esquecessem o football e resgatassem, em nome da cultura brasileira, atividades nacionais que andavam esquecidas: “reabilitem os esportes regionais que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, a rasteira. A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência”!* O Matuto achou castiça esta referência à ‘rasteira’ como o “esporte nacional”. Revelador, no mínimo. O Óscar, a lagartixa residente da “Casa das Pontes”, espreguiçando-se no muro, lança as patas aos céus: “rasteira sou eu, e não digo tanta barbaridade”!

Entretanto, começou o Mundial de Clubes e o Brasil tem 4 dignos representantes em competição: O Palmeiras, o Botafogo, o Fluminense e o Flamengo. Este último, o Clube de Regatas do Flamengo, é responsável pela glorificação do exercício físico, para a saúde do corpo e da alma de milhares de Cariocas. Jovens outrora balofos e raquíticos, ostentavam de repente largos peitorais (“pecs” para os Ingleses, informa o Sr. Rocha), uma cintura fina, a perna nervosa e uma musculatura hercúlea de braços. Era o delírio do ‘rowing’ – o remo -a paixão dos ‘sports’. Nos dias de regatas a cidade do Rio engasgava-se num gentio urbano. Mas um clube que começou com regatas depressa ficou ébrio do football. O ‘ground’ – campo de jogos – do Flamengo era colossal. “Nas arquibancadas os patrícios sentavam-se como num circo romano” – esclarecia o Sr. Rocha. “E as mulheres assistiam”? – perguntou a Belinha. “Sim” – garantia o Sr. Rocha – “as meninas daquele tempo ficavam pálidas de emoção gritando o nome dos jogadores. A mulherada, como sacerdotisas, dava-se a hábitos inéditos como nunca se tinha visto em arenas de jogos. Os ‘gladiadores’, os jogadores do football, claro está, eram modelos de crânio alongado e pontiagudo, dando pontapés com os membros inferiores que em muito faziam lembrar certos ancestrais do homem”. O Matuto ficou atarantado com esta descrição do Sr. Rocha – que fascinante deveria ser assistir a uma partida de ‘bolapé’. O Sr. Rocha continua: “na verdade, as senhoras que assistiam ficavam de tal maneira empolgadas que esqueciam a postura duma dama, e de vocabulário baixo e rasteiro (outras vez a rasteira!), de calão em calão, competiam com os carroceiros do tempo”. “Dá um exemplo” – implora a Belinha. “Só se for em Chinês” – atalha o Marcello, abespinhado com o rumo da conversa. O Marcello é notoriamente esquelético e acha que ‘decote’ é palavrão. Dona Sirlei soltou um suspiro de alívio: “afff”!

O Matuto ficou pensativo. Graciliano bem que tentou resgatar o porrete e a queda de braço… mas acabou vencido por vinte e dois matulões atrás duma bola. No fundo, o football é mesmo isso: uma rasteira bem dada na previsão dos intelectuais. O Sr. Rocha ainda tentou explicar as origens etimológicas do termo “corner kick”, mas foi calado no grito pela Belinha: “Chuta essa bola, miseráááável!”. O Matuto acha que o Brasil assimilou sim o football — mas do seu jeito: com emoção, exagero, superstição, e três cambalhotas por segundo. Porque o futebol para o Brasileiro, não é só paixão. É teatro, é circo, é novela, é religião. Uma coisa é certa: não existe desporto (esporte, no Brasil, por favor) mais democrático — até o Óscar, que nem tem dedão, já está treinando rasteiras em cima das pombas do jardim. Vai que ainda é convocado!

 * (in, Milton Pedrosa, Gol de Letra: O Futebol na Literatura Brasileira, Editora Global, 1967, página 167)