O Matuto e a Tatuagem

O Matuto não conhece ninguém que seja vizinho duma hospedeira. Elas nunca tomam uma bica na pastelaria da esquina. Não se topam na fila do supermercado. Não frequentam as cabeleireiras do bairro. Enfim!

O Matuto tem uma paixão por aviões. Dois anos na Força Aérea Portuguesa, onde fingiu ser mecânico aeronáutico, deixaram vestígios. Ora, o Matuto sabe de fonte segura que no geral todo o homem tem uma ligeira admiração por aeromoças (hospedeiras, em Portugal, por favor). Digamos, um suave deslumbramento. 

Vem isto a propósito dum livro de Pedro Boucherie, “A Década Prodigiosa – Crescer em Portugal nos anos Oitenta”, onde se desnuda a alma da sociedade Portuguesa, dos anos oitenta, numa análise antropológica certeira (na opinião do Matuto, está bem de ver). A páginas tantas Boucherie escreve o seguinte sobre o pessoal da TAP: “os funcionários da TAP foram durante anos os grandes instigadores de modernidade em Portugal, trazendo encomendas para familiares e amigos, abastecendo os felizardos de produtos comprados em lojas francas, biquínis do Brasil, discos de Londres e Nova Iorque, whisky e cigarros e tudo o que lhes fosse encomendado, incluindo remédios, próteses ou outros bens relacionados com a saúde. Os que viajassem com regularidade eram os novos mercadores, pois uma coisa era ir a Espanha, outra era poder ter uns óculos Ray-Ban ou um par de Levi’s vindos diretamente dos Estados Unidos”. Depois Boucherie menciona as ‘hospedeiras’: “Quantas hospedeiras terão aproveitado para arredondar rendimentos vendendo biquínis e óculos escuros?”*

Numa ideia atirada ao serão, na “Casa das Pontes”, o Matuto opinou que todo o homem aprecia o glamour duma hospedeira. “Elas são um exemplo de autocontrolo, profissionalismo, elegância e negócio” – defende o Matuto. “Que negócio qual carapuça” – atalhou rapidamente a Belinha, a visita conservadora das ‘Pontes’. “Sim” – garante o Matuto. “Sempre foram empreendedoras. Ou vendendo os óculos Ray-Ban, ou vendendo perfumes Chanel naqueles carrinhos metálicos nos corredores do avião”. “Bom, isso tem um certo charme” – confessa o Marcello, a visita reaccionária das ‘Pontes’. “Denguices”! – reage Dona Sirlei, a gentil esposa do Matuto. “Convém dizer que ‘denguice’ – vai explicando o Sr. Rocha, a visita letrada das ‘Pontes’ – tanto pode significar uma certa delicadeza no comportamento, como um pretensiosismo. Um exagero”. “Frescura” – é a Belinha a sacudir com um manear de cabeça os sentimentos dos homens quando a palavra “hospedeira” ou “aeromoça” é articulada.

Na verdade, parece haver um consenso entre a camada masculina da população que habita este planeta azul, em relação ao embevecimento gerado por estas guerreiras de terra, mar e ar. Todo o homem acha que por princípio, meio e fim, elas são formidáveis. Daí que tenham surgidos certas utopias à volta destes seres etéreos. No ar, elas deslizam pelos corredores suavemente empurrando aqueles carrinhos com rodinhas. Fora do ar somem, puxando harmoniosamente malinhas com rodinhas. Pufff! Trás-pás-vira-pira! Evolam-se em fumos. O Matuto não conhece ninguém que seja vizinho duma hospedeira. Elas nunca tomam uma bica na pastelaria da esquina. Não se topam na fila do supermercado. Não frequentam as cabeleireiras do bairro. Enfim! Volatizam-se. Dissipam-se. Por magia, pufff, evaporam. O Matuto acha que elas, fora do ar pressurizado dos aviões, são meras alucinações. E, eis que nesse momento o Matuto diz algo que deixa os visitantes das ‘Pontes’ banzados: “eu já vi uma hospedeira fora do ar. Ao vivo e em terra”. Espanto geral. “Conta, conta” – pede a Belinha. “Ahff” – ruge Dona Sirlei.

Era o Matuto mais novo. Um jovem Matutinho. Andava ele pelos “Viveiros” na zona dos Olivais Sul, em Lisboa (eram os anos oitenta). Um amigo do Matuto disse que sabia duma hospedeira que todas as tardes frequentava a Piscina Municipal dos Olivais. Ele tinha visto com os olhos que a terra há de comer. Mais. A dita beldade teria uma tatuagem na coxa. Este detalhe espicaçou a curiosidade do Matuto que se encheu de brios. Comprou uns óculos de natação, uns calções catitas e uma discreta bóia. É que o Matuto nada como o prego. Zero à esquerda no elemento marinho. O Matuto na água é que nem boi bêbado, um avião sem asa. Mas, o Matuto precisava certificar-se deste milagre. Colocou os óculos Ray-Ban – comprados a um piloto gringo – e lá foi conferir a existência da visão e da sua tatuagem. Num vôo aquático tudo se verificou. Ela existia. E tinha. Tinha tatuagem. Era um avião. Na coxa direita. Um Boeing, com certeza! O Matuto viu aquele avião vir na sua direção e começou a engolir água. Braços em cruzes. Pés frenéticos a espernear. Os pulmões a rebentar. O Boeing batia as asas voando rumo ao Matuto. E o Matuto numa luta titânica para se manter à tona. Turbulências líquidas toldaram a visão do Matuto que nesse dia quase entregou a alma ao criador.

O Matuto foi salvo por um nadador salvador de grandes bigodes. Desde aí, só nada de mansinho na piscina da “Casa das Pontes”, com a Dona Sirlei de olho à espreita. Não vá aparecer uma tatuagem dum Boeing.

*(in, “A Década Prodigiosa – Crescer em Portugal nos Anos Oitenta”, Pedro Boucherie Mendes, capítulo 4 – formato Kindle, Edições Dom Quixote, 2024)