Saturno e a lentidão

Iniciado nos anos 1920, o projeto parecia enguiçado e demorou mais de 40 anos a terminar, o que se coaduna com as características de Saturno, deus associado à lentidão. Mas estas atribulações, que para os autores foram certamente motivo de angústia, emprestam à obra uma aura mítica.

Para quê continuar a iludir-me? Nos quinze dias de férias do ano passado não consegui nem de perto nem de longe ler um livro inteiro. Por maioria de razão, este ano, em que iria ter apenas uma semana de descanso, não valia a pena viajar com um saco cheio de livros como se fosse instalar-me durante um mês numa ilha deserta sem nada para fazer.

Assim, ao contrário do que é hábito, nem me dei ao trabalho de perder tempo com grandes escolhas.

Talvez já tenha escrito aqui que os livros que levo para as férias preenchem normalmente três requisitos: estão escritos em português, contam uma história e não têm notas de rodapé. A estes três podemos juntar um quarto: o de serem livros que nunca abri, para lhes ficar associada uma sensação, por assim dizer, de frescura.

Mas nestas férias, pelo contrário, limitei-me a pôr na bagagem o livro que andava a ler nas últimas semanas: um denso e pesado calhamaço em francês sobre o não menos denso e pesado tema das relações entre Saturno (o planeta, mas também o deus do panteão greco-romano) e a melancolia, assinado por três académicos germanófonos do século passado.

Creio que o vi pela primeira vez em 2008, numa livraria parisiense de livros usados, mas a escolha era tanta e o meu orçamento na altura tão pequeno que acabei por sair de lá de mãos vazias. No dia anterior ao meu regresso a Portugal, voltei a passar pela livraria – a Gibert Joseph, no Boulevard Saint-Michel –, com o alvo já bem definido. Como tantas vezes acontece nessas situações, ao fim de quase uma hora de viagem cheguei lá apenas para constatar que o livro já tinha sido vendido. De volta a Lisboa, acabei por encomendá-lo pela internet.

Intitulado Saturne et la Mélancolie – Études historiques et philosophiques : nature, religion, médecine et art (Saturno e a Melancolia – Estudos históricos e filosóficos: natureza, religião, medicina e arte), este é um livro que se tornou quase mítico, muito graças ao seu percurso acidentado.

Na sua génese esteve um estudo de dois historiadores de arte, o alemão Erwin Panofsky e o austríaco Fritz Saxl, publicado em 1923, sobre a famosa gravura de Dürer Melencholia I. Daí surgiu a ideia de alargar o âmbito do estudo para reconstituir a complexa teia de relações entre Saturno e o estado melancólico, um mal-estar difícil de definir, associado à tristeza mas também à criação e à genialidade. Para essa tarefa, que devia abarcar tudo o que foi dito e escrito desde a Antiguidade mais remota até aos tempos modernos, a Panofsky e Saxl juntava-se um terceiro autor, o historiador da filosofia Raymond Klibansky, judeu nascido em França, filho de pai alemão e mais tarde naturalizado canadiano.

«Em todas as etapas da sua preparação o livro enfrentou atrasos e adversidades», escrevem Panofsky e Klibansky no prefácio à primeira edição, de 1964. «Após uma longa interrupção devido às convulsões políticas na Alemanha na década de 1930, e à emigração dos autores para o estrangeiro, os trabalhos foram retomados em Inglaterra. No verão de 1939, as provas finais do livro foram entregues à gráfica, localizada em Glückstadt, perto de Hamburgo; logo após o armistício, em 1945, soube-se que os tipos em chumbo tinham sido destruídos durante a guerra. A ideia de ressuscitar a versão alemã perdida parecia fora de questão. Os autores optaram, em vez disso, por publicar uma tradução para o inglês, a ser feita a partir de uma cópia das provas da versão alemã que haviam sido preservadas».

Como se não bastasse, em março de 1948, a morte de Fritz Saxl devido a um ataque cardíaco – para o qual podem ter contribuído os anos de excesso de trabalho e a ansiedade da guerra – veio provocar um novo sobressalto.

Por outras palavras: o livro parecia enguiçado, o que aliás estava perfeitamente de acordo com as características de Saturno, deus associado à velhice e à lentidão.

Mas, se para os autores estas atribulações devem ter sido motivo de angústia, não é menos verdade que elas emprestam à obra uma aura muito própria e especial. Foi essa aura mítica, em parte, que me atraiu irresistivelmente para a sua leitura.

Só que uma coisa é a obra que idealizamos e outra é a obra real – nalguns casos pode haver uma correspondência, mais frequentemente há um desfasamento. Ao fim de algumas semanas de leitura, este Saturne et la Mélancolie faz-me lembrar uma bela montanha que, vista à distância, oferece uma paisagem de cortar a respiração. Mas, se formos ao local e tivermos de a escalar, ficaremos com uma perspetiva bem diferente. A beleza está lá na mesma, mas deparamo-nos com mil e uma dificuldades – no presente caso, destacaria as longas citações em latim e grego e as intermináveis notas de rodapé, que por um estúpido escrúpulo faço questão de não saltar. Não se trata obviamente do livro mais adequado para as férias de verão, sobretudo se o objetivo for o descanso. E, prosseguindo na analogia da montanha, o que se consegue escalar numa semana é manifestamente pouco. Os obstáculos e dificuldades estão à vista, bem próximos, mas os cumes de Saturno continuam muito lá ao longe.