Espanha. Tumultos em Torre Pacheco

Torre Pacheco foi assolado pela violência após o espancamento de um idoso por um jovem magrebino.  A normalidade está de volta, mas o problema é mais profundo.

Torre Pacheco, uma localidade situada no sudeste de Espanha e pertencente à Comunidade Autónoma de Múrcia, tem sido palco de tumultos que colocam em evidência vários problemas que os países europeus enfrentam. Este relativamente pequeno município, de cerca de 40 mil habitantes, tem estado no centro de debates acalorados sobre um dos temas mais quentes do momento: a imigração. Mas qual é a razão fundamental por detrás da violência que tomou as ruas de Torre Pacheco?

A resposta não é, de todo, simples. O clima de cortar à faca entre imigrantes, espanhóis e grupos de extrema-direita tem sido escrutinado ao pormenor, com acusações de todo o tipo e muitas conclusões que parecem funcionar como ferramenta para alavancar uma ou outra agenda política. 

O pontapé de saída no caos foi dado às 5h30 do passado domingo, quando Domingo, um homem de 68 anos, foi brutalmente agredido enquanto dava o seu passeio habitual na zona do cemitério local. A imagem da vítima após as agressões chocou e sensibilizou todos os que a viram e deu azo às cenas de pancadaria que se sucederam.

A TVE entrevistou Domingo, que está de regresso à vida normal, a «jogar ao dominó durante horas e acompanhado pelos amigos», após cerca de uma semana de recuperação. «O que aconteceu não é a norma, mas queixam-se que há insegurança no bairro, com furtos e roubos ocasionais em “algumas casas”. Em Torre Pacheco “não há ódio”, dizem, apenas o desejo de manter a convivência», escreve a RTVE num artigo publicado na quarta-feira.

Mas, de acordo com a Euronews, a questão mais inquietante do sucedido foi o facto de não se tratar de uma tentativa de roubo, mas sim de um ato que tinha como objetivo «a gravação de um vídeo para as redes sociais». «Segundo a vítima», escreveu a Euronews em Espanha, «viu os jovens a vários metros de distância antes do ataque. O primeiro deles precipitou-se sobre ele e, sem dizer uma palavra, começou a bater-lhe violentamente, sobretudo na zona da cara. Os agressores atiraram-no ao chão e começaram a dar-lhe pontapés e murros». «Apesar de terem revistado os seus bolsos, foi excluída a hipótese de roubo, uma vez que Domingo trazia consigo um relógio, que em nenhum momento tentaram roubar», continua a notícia.

«As autoridades associam o incidente a um desafio viral que incentiva ataques a pessoas vulneráveis em troca de gostos e visualizações», e rapidamente se tornou viral um vídeo em que vários jovens agridem uma pessoa que se acreditava ser Domingo, a vítima da agressão em Torre Pacheco. Entretanto, já foi clarificado tanto pela família quanto pela vítima do vídeo em questão não era o habitante de Torre Pacheco, mas sim José, um residente de Almería, vítima de agressões no passado mês de maio. «São duas agressões diferentes com um vídeo em que estou gravado, isto aconteceu em maio passado, em Almería», disse José num vídeo publicado nas redes sociais, citado pelo diário ABC. «Estão a confundir o espancamento do idoso em Múrcia, que é verdade, com o meu espancamento».

Outra situação

Este cruzamento de histórias acabou por dar a conhecer mais um caso de violência deste tipo. «Vieram ter comigo e pediram-me cigarros, eu disse-lhes que não tinha e eles começaram a apedrejar-me, a chamar-me maricas, a dar-me pontapés, a dar-me murros», relatou José, que disse ainda estar submetido a tratamento psicológico: «Farei tudo o que puder e mais (…) Estive hospitalizado durante uma semana com costelas partidas, o pior são as sequelas psicológicas que ainda tenho. Sonho com o espancamento, tenho medo quando saio sozinho de que alguém olhe para mim ou que algum jovem se aproxime de mim. Estou em tratamento».

Voltando à agressão de Domingo, a vítima disse que os agressores lhe pareciam jovens magrebinos, mesmo que não tenha sido capaz de os identificar de forma precisa. Depois acabou por se confirmar, como noticiou o El Confidencial, que «o agressor do idoso de Torre Pacheco chama-se Issam B. e tem antecedentes por roubo com uso de força», «tem 19 anos e é de origem magrebina» e foi «detido quando tentava escapar para França de comboio».

As declarações de Domingo, aliadas à foto chocante que se espalhou online e que chegou a ser usada por Santiago Abascal, líder do Vox, num ato do partido, foram o rastilho para o que se sucedeu. Como relatou a Euronews, «as organizações de extrema-direita que comunicam através dos canais Telegram, como a “Deport Them Now”, apelaram a uma ‘caçada’ nos dias 15, 16 e 17 de julho, prometendo “patrulhas de bairro” que procurariam os agressores para lhes “fazer justiça direta”». O jornal espanhol La Nación ofereceu mais detalhes sobre estes grupos: «Armados com paus ou barras de ferro, e muitos deles escondendo o rosto, estes grupos violentos percorreram durante várias noites Torre Pacheco, especialmente o bairro de San Antonio, maioritariamente de imigrantes, à procura de pessoas de origem norte-africana». É importante notar que dos 40 mil habitantes de Torre Pacheco, cerca de 30% são imigrantes e a maioria oriunda de Marrocos.

A Guardia Civil destacou mais de uma centena de agentes para conter o cenário que conteve traços que o faziam assemelhar-se a uma guerra civil. A normalidade parece ter voltado à localidade, com o Presidente da Câmara, Pedro Ángel Roca, a garantir que «a operação policial funcionou muito bem», mesmo depois de terem sido empreendidas manifestações anti-imigração.

Um problema complexo

Ainda que a normalidade esteja de volta, estes acontecimentos deixam a descoberto todo um conjunto de problemas e de tensões sociais que não são exclusivos à pequena localidade espanhola. Pelo contrário. Como escreveu Ana Miguel Pedro, eurodeputada eleita pela Aliança Democrática, no Observador, «em poucos dias, Torre Pacheco transformou-se num símbolo perturbador de algo muito maior: a polarização social e a crescente sensação de insegurança na Europa perante fluxos migratórios mal geridos e falhas na integração de comunidades culturalmente distintas». Acrescentou ainda: «um crime hediondo cometido por indivíduos oriundos de comunidades cuja integração apresenta falhas sérias; um sentimento de revolta e abandono na população; oportunistas extremistas a deitar gasolina na fogueira; explosão da violência xenófoba; e, por fim, autoridades em apuros a tentar restaurar a ordem». O que aconteceu em Torre Pacheco, diz, «é um microcosmo dos desafios que hoje ecoam por toda a Europa».

Também o líder da oposição espanhola, Alberto Nuñez Feijóo, não poupou nas críticas à política de imigração adotada pelo governo espanhol nos últimos anos: «Aqueles que cruzaram as nossas fronteiras para violar a lei não nos representam e aqueles que a incumprem tendo nascido aqui tampouco. Aos imigrantes exigimos respeito e integração. Os que não o fizerem, devem saber que não são bem-vindos». Feijóo, citado pelo El Mundo, acusou ainda o executivo de Pedro Sánchez de estar a usar os desacatos «para tapar as suas concessões ao separatismo e à sua corrupção», referindo-se ao processo de amnistia concedido aos envolvidos no referendo ilegal de 2017 na Catalunha que tem sido também alvo de duras críticas em Espanha e na Europa.