O Matuto e as Profissões

Ao arrepio do preço do arrendamento (aluguel, no Brasil, por favor), salta-se de casa em casa. Dona Sirlei – gentil esposa do Matuto – deita as mãos à cabeça e sobe nas tamancas, cada vez que se cogita uma mudança: “afgh! Chega de mudar de casa”.

O Matuto não gosta de mudar de casa. Mas, se há coisa que o Matuto tem feito na vida, é mudar de casa. Mais: também tem mudado de continente. No Brasil, país que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio, a vida nómada tem sido uma constante. Ao arrepio do preço do arrendamento (aluguel, no Brasil, por favor), salta-se de casa em casa. Dona Sirlei – gentil esposa do Matuto – deita as mãos à cabeça e sobe nas tamancas, cada vez que se cogita uma mudança: “afgh! Chega de mudar de casa”. Todavia, a vida é como é.

Na “Casa das Pontes” a discussão versa sobre os efeitos nocivos das ‘máquinas’ na vida humana. O Sr. Rocha – a visita letrada das ‘Pontes’ – diz: “a inteligência artificial tem avançado a passos largos, prometendo eficácia e inovação. Ninguém resiste”. “É verdade” – atalha a Belinha, a visita conservadora das ‘Pontes’ – “mas deixa na ressaca um magote de profissões em risco”. Marcello – a visita reaccionária das ‘Pontes’ – acrescenta: “é como se os robôs estivessem a preparar uma festa de despedida. Só que esqueceram de convidar os humanos”. “A solução é uma adaptação rápida, antes que o chocalho da mudança comece a tocar alto demais” – a Belinha hoje está a atirar para o lírico-depressivo. Uma maçada!

Atento à conversa, o Matuto vai matutando nestes males da existência. Afinal de contas a mudança para a “Casa das Pontes” foi um evento épico. Desde logo pela infinitude de profissionais que foi preciso contactar. O Matuto vai inventariando mentalmente a lista: logo à partida, foram contractados homens da empresa de mudanças, que comparecem com cobertores e uma extensa parafernália de plásticos protectores, para envolverem em cuidados e caldos de galinha as dezenas de caixas de pratos e copos, e as centenas de livros; depois, já nas ‘Pontes’, foi contactado o homem da internet, que uma alma amiga conseguiu em 24 horas, a migração do sinal era um imperativo; de seguida foi necessário um ferreiro soldador, homem de experiência Nipónica, para garantir a segurança das ‘Pontes’ com fechaduras reforçadas; veio um piscineiro para devolver certa limpidez à água da piscina; um fogareiro para instalar o fogão, visto que válvula de segurança estava fora do prazo há 25 anos; um canalizador para arrumar a torneira manhosa; um vidraceiro para substituir a janela por onde a água entrava tipo cataratas de Iguaçu; um pedreiro que tentou reconstruir a casinha do motor da piscina, sem resultado – continua lá aquele cenário de guerra do Iraque; um electricista que fez uma puxada para haver energia na casa das máquinas; um jardineiro para tosquiar o jardim que parecia uma Amazónia que insónia; um profissional de ar condicionado foi acionado para limpar filtros e mudar peças danificadas; um limpador de sofás foi chamado às ‘Pontes’ para dar alguma alvura às almofadas da sala; e, por causa das ervas daninhas no passeio/calçada, foi preciso convocar um ‘mata mato’, o Sr. Joane que veio de veneno às costas fazer o serviço; e um dia o Matuto quis operar o milagre de sair da garagem sem abrir o portão e foi necessário recorrer aos serviços dum profissional de portões electrónicos e reparar calhas e cremalheiras; e foi preciso um carpinteiro para dar solidez às estantes que albergam centenas de livros; e um caçador de morcegos para espantar de telhado as dezenas de amigos noctívagos do Batman – sem sucesso. No dia a dia a fiel Lena e o amável Francisco são presença incontornável, na “Casa das Pontes”. Ora bem, eis aqui uma dúzia de profissões que não estão em extinção, pelo contrário – conclui o Matuto.

Nesta última etapa, até chegar às ‘Pontes’, as hostilidades começaram quando os homens da mudança deram de caras com o frigorífico (geladeira, no Brasil, por favor), de dois metros e meio. Olhares desconfiados mediram o brutamontes branco.  O Matuto observava a cena. Rodearam o objecto como um caçador examina um hipopótamo. Estudavam a melhor forma de subjugar o animal resfolegante. Eram três, os amantes da cinegética. De repente, um deles agarrou o bicho, ou melhor o frigorífico, e levantou-o, enquanto outro deitou as mãos do lado oposto e o terceiro plantou as manápulas no torso da besta hostil. O frigorífico empinou que nem um elefante ofendido, balançou que nem um navio em alto mar e galgou distâncias etéreas à laia de nave espacial. Os homens retesaram músculos, fincaram os pés e assentaram as gadanhas na alimária. O frigorífico equilibrou e começou a perder terreno para os homens de sabedoria manual. O avanço era perceptível, embora lento – constatava o Matuto. Eis que surge a escada: abismo insondável. Os homens transformados em gladiadores, reagrupam-se para estudar a táctica. O frigorífico respira livre na sua brancura de virgem, e frescura de fera ferida. Novamente o animal é manietado e cercado e abraçado pelos profissionais da mudança. Homens de brio. Frios no seu dever. Zelosos da sua função. E o Matuto observando. O frigorífico começa a ter o ar ridículo e acabrunhado dos derrotados. Com solenidade melancólica os profissionais depositam o enorme animal selvagem no passeio (calçada, no Brasil, por favor). Toda a rua fica meio nua com aquela fera golpeada, exposta ao trânsito e à populaça. Afinal esta fera está habituada a ronronar placidamente no aconchego privado duma cozinha. O espaço público da rua não é o seu habitat natural. Os profissionais içam o frigorífico para o caminhão. Com delicadeza cobrem a sua nudez com panos sujos e plásticos aderentes. Ele fica domado. Com cordas fortes amarram-no, não se dê o caso dele querer pular para o suicídio, ou estatelar-se no asfalto. Na “Casa das Pontes”, instalou-se e aquietou-se. Adaptou-se bem aos outros animais eletrodomésticos já conhecidos ou, entretanto, adquiridos. E lá está no seu ronquejar mecânico de máquina – relata o Matuto.

O Matuto remata: mudar para a “Casa das Pontes” foi uma missão possível. Manter a sanidade mental, nas intercadências, são outros quinhentos. E a IA que não se arme em sabichona! Se quiser eliminar profissões que venha primeiro desentupir pias com um arame, escorraçar morcegos rebeldes e carregar frigoríficos, sem pedir arrego.