O medo e a fúria

Enquanto a liberdade de expressão é posta em causa pelos movimentos anticiência e pelo negacionismo climático, as plataformas que disseminam fake news propagam intrigas, boatos e teorias da conspiração.

A cultura do cancelamento, inventada pela esquerda woke, teve um efeito de boomerang. O cancelamento passou a ser a arma do populismo nacionalista, erradamente conotado com a extrema-direita, porque os seus apaniguados, muitos dos quais transitaram da esquerda autoritária radical, continuam a ser contra a economia de mercado que distingue a direita e exigem mais Estado.

Enquanto a liberdade de expressão é posta em causa pelos movimentos anticiência e pelo negacionismo climático, as plataformas que disseminam fake news propagam intrigas, boatos e teorias da conspiração. As diferentes elites são os alvos preferenciais de uma estratégia que conduzirá inexoravelmente à repressão, a começar pela Academia e pelas instituições culturais e cívicas.

Como é possível termos voltado a cair na ratoeira da tribalização? A mutação social ocorre a uma velocidade vertiginosa. Para além da eficácia dos instrumentos tecnológicos utilizados na sua disseminação, o radicalismo capitaliza o medo e a fúria que alastra na sociedade. Aproveita ainda o facto de termos desvalorizado a História como elemento fundamental da educação das gerações do pós-guerra, o que facilita os revisionismos e beneficia do negacionismo da esquerda tradicional que, incapaz de confrontar os problemas, prefere recusar a sua existência.

Assistimos, impotentes, à incapacidade de regeneração dos sistemas que sustentam a democracia. Testemunhamos, com pessimismo, o crescimento do corporativismo do Estado e, com angústia, a revolução tecnológica que excluirá uma parte considerável da população. A Inteligência Artificial introduz uma nova discriminação e uma luta de classes entre aqueles que vão prosperar, porque têm qualificações e adaptabilidade, e os que sentem que estão a ficar pelo caminho, porque não conseguem acompanhar o desenvolvimento tecnocientífico. Estes últimos são subvertidos por projetos autocráticos e iliberais. Desdenham o conhecimento científico por instinto, porque pressentem que este os discrimina.

Tudo isto decorre num clima de medo que nos é instigado. Segundo um recente estudo da SEDES, «há desalinhamento entre a realidade objetiva da criminalidade (…) e a perceção subjetiva da insegurança, por parte dos cidadãos», criando um «paradoxo que mina a confiança nas instituições e compromete a formulação, desenvolvimento e eficácia das políticas públicas». A contradição adensa-se com a desproporcionada representação da extrema-esquerda na comunicação social, com um discurso que, sem inocência, inflama o radicalismo.

Todos conhecemos pessoas sensatas que, subitamente, parecem insensíveis, aderem a discursos xenófobos e à anticiência. Se antes eram recetores e consumidores de fake news, agora são autores e emissores. Utilizam-nas para dourar os seus argumentos e desconsiderar, insultar e questionar a seriedade de quem pensa de outra forma. Sem discutir o diagnóstico sobre o que os irrita e assusta, devemos questionar o método de tratamento que propõem. É possível, quiçá, que alguns compreendam que os efeitos secundários da terapia que lhes venderam são mais sérios do que a doença.
Vivemos tempos desafiantes. Há uma crise demográfica que nos obriga a escolher entre um modelo económico diferente ou o aumento da imigração; há um problema de segurança que implica que reavaliemos a proteção e defesa; há um Estado Social esmagado pelo garantismo que desrespeita o utente. Ainda assim, é melhor resolver tudo isto em liberdade.