«Eu não queria viver aqui com os meus filhos. Mas não tinha outro remédio». A frase escapa num tom cansado e hesitante da boca de Ivanésia, de pé no que foi o interior de uma casa, onde vivia com os seus três filhos menores, no bairro do Talude Militar, em Loures. E da qual, depois da demolição no dia 30 de junho, já só sobram destroços. Ainda assim tenta arrumar os pertences ‘ensacados’ que as máquinas da câmara não destruíram.
É de manhã, mas o sol de julho já queima o chão de terra batida, e faz reflexo nos objetos e peças de metal espalhados pela zona mais afetada pelas demolições da câmara. Chegar ao centro do bairro, para quem não o conhece, não é fácil. Poucos pontos de referência aparecem no Google e a estrada é uma espécie de caminho atapetado de pó e lama. No meio, duas torres de alta tensão riscam o céu. O silêncio é quase absoluto, entrecortado apelas pelo estrondo dos muitos aviões que sobrevoam a área, num rumor alto e constante.
Aquela zona do Bairro do Talude, que assistiu às primeiras construções clandestinas há cerca de 40 anos, é, tal como agora se vê ao longe, uma espécie de sucata a céu aberto e à chapa do sol. Por todo o lado há placas de metal, bocados de madeira, tijolos partidos. Mas a aproximação revela um cenário diferente e em cada bocadinho de chão veem-se brinquedos, roupa, sapatos, frigoríficos, fogões, sofás, colchões, malas empilhadas, testemunhas mudas de uma vida interrompida.
Pelo meio, cães vagueiam ou dormem à sombra, um pequeno rebanho de cabras passa lentamente e, ocasionalmente, ouve-se um ou outro galo, escondido nos pátios de casas que ainda resistem no bairro.
São poucas as construções intactas – terão sido demolidas mais de cinquenta –, mas há algumas que escaparam graças à suspensão ordenada pelo Tribunal de Loures. Veem-se poucas pessoas na rua, num bairro que parece vazio, mas não está. A maioria das pessoas que ali vivia, e algumas ainda vivem, saiu para ir trabalhar, nas limpezas, nos lares ou na construção civil.
No Talude estão mais crianças do que adultos, mais jornalistas que moradores. Poucos falam, recusam dar o nome ou a cara, e os poucos que o fazem quase que se limitam a dizer a idade e há quanto tempo moram ali.
Guardar os pertences
Ivanésia, natural de São Tomé, aceita falar, vencida alguma timidez inicial. «Soubemos na sexta-feira e na segunda já estavam a partir tudo. Só deu tempo para salvar o essencial», lamenta, enquanto conta que alguns moradores preferiram ser eles próprios a deitar abaixo as barracas, para tentar proteger os próprios bens: «Tinham medo que as máquinas destruíssem tudo».
Tem 35 anos e três filhos, de 17, 11 e 8 anos. Vivia ali desde março, sabia que a construção não era legal, mas sentiu que não tinha alternativa. Reconhece que aquelas não são condições para se viver, especialmente com crianças, mas não consegue pagar uma renda.
Ivanésia trabalha num lar e ganha o salário mínimo. Antes do Talude, viveu numa casa no Cacém, onde pagava 850 euros de renda, mas a senhoria ia aumentar e o que era, de si uma situação muito difícil, tornou-se completamente insustentável: «Foi nessa altura que me falaram do Talude». Comprou material com o pouco que tinha conseguido juntar, pediu ajuda à família e a moradores do bairro e levantou as paredes com as próprias mãos. «Sabia que era ilegal. Mas não tinha alternativa», vai repetindo. «Não tínhamos água, e a luz era puxada de fora. Mas os meus filhos tinham um teto» diz, acrescentando que o mais velho, de 17 anos, está a lidar pior com a situação e nem quer voltar ao bairro. Os mais novos têm menos noção e voltam durante o dia, depois de terem passado a noite em casa da mãe de Ivanésia, que vive numa habitação da câmara na Quinta do Mocho. «Ainda brincam como se fosse tudo quase normal e continuam a andar de bicicleta» entre o entulho e as tendas improvisadas.
Desde 30 de junho que Ivanésia dorme ao relento, num sofá, para guardar os pertences que lá estão. Já uma das outras três irmãs, que também viram as suas casas serem deitadas abaixo, pernoita numa tenda. Vão-se assim revezando para tomar conta dos bens e das crianças durante o dia e vão fazendo as refeições no fogão. «Há sempre um tacho ao lume, comida não tem faltado», diz, sublinhando que tinha carne no frigorífico que se estragou.
Ao todo, na família, são nove os menores que ficaram sem casa e que agora dormem em casa da avó. «Mas isso não é solução, a câmara não deixa que estejam lá todos. A minha mãe tem outros dois filhos mais novos também já a viver lá», explica.
Ajudar os vizinhos
A vida no bairro, quase todo demolido, é feita de entreajuda. Os poucos moradores que não viram as suas casas demolidas acabam por acolher os vizinhos desalojados, principalmente as crianças.
É o caso de B. (que preferiu não ser identificado), que ali está numa das poucas construções de pé, embora tenha colados na porta os avisos a anunciar a demolição. Ao lado, também com fita-cola, uma folha A4 onde se lê: «Aqui vive gente». Esta terá sido uma das habitações que escaparam com a suspensão ordenada pelo tribunal.
B. tem 46 anos e vive no bairro há quatro meses, trabalha na construção civil, mas naquele momento está a tomar conta de duas crianças, uma rapariga de 12 anos e um rapaz de nove, seus sobrinhos. A mãe dos menores está em São Tomé a tomar conta da mãe doente e soube das demolições à distância. À noite, a pequena habitação acolhe outras crianças de famílias que ficaram desalojadas.
Em dois dias, mais de 50 habitações desapareceram. Uma delas era a casa de Jenílsia, de 20 anos, que vivia com a mãe, de 50 anos e com problemas de coração. Ambas perderam a casa também a 30 de junho. Vieram de São Tomé há pouco mais de um ano. Depois da demolição foram acolhidas por uma vizinha, mas dias depois também esta habitação foi deitada abaixo.
A jovem, que trabalha na zona da Portela a cuidar de uma senhora idosa, tem passado as noites em casa de um amigo e está muito preocupada com a mãe doente. Não sabe como vai ser o futuro e não vislumbra qualquer solução.
Sobreviver aos escombros
O bairro, quase invisível nos mapas, cresceu em silêncio desde os anos 80. Primeiro vieram barracas, depois casas de alvenaria. Sem licenças, sem infraestruturas, mas com sentido de comunidade. No passado houve outras demolições e as pessoas voltavam a construir. Há moradores que ergueram as suas habitações duas e três vezes.
Até que, este ano, o crescimento acelerado – dezenas de novas construções num curto espaço de tempo – apressou a ação da câmara liderada por Ricardo Leão, eleito pelo PS. Mas os moradores não estavam preparados para o que viria a acontecer e alguns, quando há uns meses foram pessoas da câmara numerar as barracas, acharam que era um passo para que a situação fosse legalizada ou, no mínimo, acautelada. Agora, dizem que esses números serviram só para identificar o que as máquinas deviam destruir.
A autarquia justifica a ação com os riscos geotécnicos já identificados na zona e com a necessidade de travar a ocupação desordenada. Os moradores queixam-se de que não lhes foram dadas soluções. Ricardo Leão diz que «só dorme ao relento quem quer» e que foram propostas alternativas.
Ivanésia diz que recebeu um cartão de 75 euros no dia 16 de julho, para devolver no dia 31, e pergunta se isso é suficiente para uma mãe com três filhos menores. «Mandaram-me procurar uma casa e que pagavam a primeira renda e a caução», conta, acrescentando que não consegue encontrar uma renda que possa pagar depois. As últimas frases são já ditas com pressa e a pentear-se, porque tem uma consulta fora do bairro daí a pouco. O gesto corriqueiro de Ivanésia é um lembrete da resiliência das pessoas que ali vivem, e para quem a vida tem mesmo de continuar, mais não seja pelas crianças. «Eu não quero criar os meus filhos aqui. Mas se não me dão uma alternativa, o que é que eu faço?», volta a repetir Ivanésia, reflexo da realidade de quem constrói vida onde e como pode.