Da desigualdade

As dificuldades da classe média justificam, pelo menos em parte, as alterações políticas a que temos assistido.

A desigualdade tem vindo a aumentar na Europa. Em certa medida, é uma mazela criada pela crise financeira de 2007-2010, que deixou as economias estagnadas e causou perda de poder de compra aos mais pobres. Por outro lado, a globalização, as alterações tecnológicas e a degradação das instituições públicas também contribuíram para isso.

A globalização, em particular, teve um impacto significativo. Os produtos manufaturados de países terceiros têm, na formação do preço, uma componente de custo de mão de obra inferior. Fator que retira competitividade às empresas e produtos europeus concorrentes.
Para a Comissão Europeia, os elevados níveis de desigualdade, que se agravaram em grande parte dos Estados-membros, suscitam preocupações em termos de justiça social, pobreza e exclusão. Ademais, têm um impacto económico negativo: obstaculizam a produção da economia e o seu crescimento potencial. Para agravar a situação, a educação, o mercado de trabalho e as instituições de segurança social não corrigem adequadamente as oportunidades desiguais. Pelo contrário: quando funcionam de forma ineficiente, como acontece em Portugal, contribuem para desigualdades de rendimento persistentes. A Comissão sugere que a solução passa por impostos e benefícios fiscais, por políticas salariais redistributivas, como o salário mínimo, e pelo aperfeiçoamento dos sistemas públicos de educação e saúde.

Ainda que Portugal tenha melhorado no coeficiente Gini, que mede a desigualdade, tal deveu-se ao aumento das pensões e do salário mínimo. Circunstância que mascara o maior problema: a depauperação da classe média. No nosso país, a classe média é tratada como se fosse rica: sofre com a sobrecarga fiscal resultante da progressividade excessiva sobre os rendimentos do trabalho, a que se somam os elevados impostos indiretos, como o IVA, e as ineficiências dos serviços públicos, que a obrigam a pagar seguros de saúde e propinas em escolas privadas. A tudo isto deve acrescentar-se as crescentes dificuldades de acesso à habitação, uma vez que a oferta, tanto pública como privada, para a classe média é escassa.
As dificuldades da classe média justificam, pelo menos em parte, as alterações políticas a que temos assistido. Havendo alguma folga nas contas públicas, a prioridade tem sido o alívio fiscal, que a sucessão de eleições ajudou a materializar por via das promessas eleitorais. No entanto, os problemas estruturais permanecem. Temos um Estado voraz, que necessita de cada vez maior receita mas que presta um serviço cada vez pior, naquilo que verdadeiramente nos preocupa: a saúde está uma lástima, a escola pública não se recomenda, o transporte público não é fiável, a habitação pública é uma miragem, a segurança já não é o que era, a burocracia é indomável. As reformas ficam, quase sempre na gaveta, ou são revertidas.

A economia lá vai crescendo, mas de forma anémica, à custa de setores de baixo valor acrescentado, que dependem de mão de obra barata. Neste contexto, o PRR poderia ter sido o instrumento da mudança. É cedo para fazer um balanço da sua execução, dado que a reprogramação só recentemente foi aprovada pelo Conselho Europeu. Mas subsistem dúvidas sobre a concretização atempada de muitos projetos estruturantes.

Para combater a desigualdade, há reformas que não podemos adiar. É óbvio, por exemplo, que a legislação laboral necessita de ser ajustada, em particular na função pública. O garantismo oferecido a quem está no sistema prejudica os que chegam ao mercado de trabalho, faltando ainda uma cultura de mérito que permitiria melhorar a produtividade, a competitividade e a remuneração. Tudo isto exige um consenso, que tem de ser construído pelo Governo. Por difícil que seja, é mesmo necessário e urgente.