Numa pequena e deslumbrante novela em que combina história e ficção, o escritor argentino vai buscar o exemplo de um pintor paisagista do início do século XIX que seguiu a sua arte até ao limite e que, perseguindo um mundo que lhe era alheio, viu-se imerso nele, ao ponto de o absorver de forma radical na sua fisioniomia.
César Aira esvaziou a literatura por dentro, levando o estudo da escrita aos lugares mais inusitados, dando-se folga para explorar caminhos que muitos considerariam inviáveis, sendo um desses escritores que levam por diante os esboços que outros deixam na gaveta, encalhados. Ele regozija-se com o desafio, prefere empurrar a trama, trocar as voltas ao leitor, sem buscar o monumento insuperável, preferindo o fulgor distractivo, narrativas híbridas, sustentadas algumas numa lírica quase científica. No seu país, a Argentina, prefere pequenos selos, o seu agente já sabe que não vale a pena negociar adiantamentos, não quer pôr o negócio a ditar seja o que for, e isso também lhe dá margem para continuar solta, deixando-se levar por entusiasmos momentâneos, arroubos, favorecendo-se da potência de um regime combinatório, mas sem abdicar da clareza, sem vir inventar a pólvora. É um prazer, por isso, ler as “novelitas” dele que nos vão chegando às mãos, gozando também o favor desse acaso, que nos desobriga de nos tornarmos num desses admiradores que, ao longo de meses ou anos, se submetem a dietas específicas, empinando as obras completas de um escritor assim que algum dos seus títulos lhes afecta a constituição. Vivem deslumbrados pelo mito da escassez, como se faltassem em séculos de literatura, mais acessível do que nunca, oportunidades para um leitor nos dias de hoje se perder, apanhar todas as doenças por cima e por baixo da pele. De qualquer modo, o que encanta no tão prolífico percurso de Aira é menos a quantidade do que a sensação de que ele não se deixou coagir a funcionar enquanto um autor fiável, há na sua escrita uma dispersão fabulosa, que oferece a quem abre qualquer um dos seus livros a oportunidade de se entregar aos caprichos de uma mente autêntica, de um escritor que parece inventar à medida que avança. Ele reclama esse atrevimento quase indecoroso para um nome de relevo no firmamento literário, o de inventar, o de admitir qualquer das direcções para que os seus impulsos o puxem. Parece ele mesmo estar intrigado com a escrita, e marca assim um contraste decisivo num momento em que a literatura parece ter-se enchido de pruridos, sendo muito clínica, querendo dar a ideia de que se trata de uma ocupação seríssima, que tem muito a dizer-nos sobre os disparates deste mundo. Assim, quando impera no terreno da ficção uma forte inclinação para o perfeccionismo, é sempre animador quando nos deparamos com uma escrita desabusada, nervosa, em que o que importa não parece ser cumprir com os trâmites, nem afinar todos os instrumentos, ter esboçado exaustivamente o esqueleto da coisa, atando tudo firmemente, tanto o ponto de partida como o de chegada, o tema, isso tudo que faz da leitura de um romance mais um compromisso burocrático. Aqui importa mais o próprio movimento a que aquilo se entrega. Basta ler umas poucas frases e já o leitor reconhece que há ali um ânimo invulgar, aquele êxtase daquilo que avança a qualquer custo. Sabemos por Aira que escreve as suas novelas do princípio para o fim, demorando-se uns meses, sem se dar margem para grandes trabalhos preparatórios ou investigações. E se publicou já mais de uma centena de títulos, se não os relê nem tenta ludibriar os leitores acenando com um universo coesa de estruturas que se avizinham e tocam, não faz muito sentido em sugerir um dos seus livros como uma porta de entrada, mas é certo que “Um episódio na vida do pintor viajante” consegue ser uma dessas obras meio anónimas, que sobreviveriam como uma extensa e fulgurante nota de rodapé de um manual de história de arte. Nas primeiras páginas, o tom é quase neutro, a escrita límpida, ainda que enérgica, e a tradução de Isabel Pettermann elegante, serve idealmente a tonalidade de uma obra que arranca no compasso firme de uma desenvolta vinheta enciclopédica, dominando os protocolos desses empreendimentos monumentais, à semelhança do que fazia Borges, num estilo rigoroso que não abre mão de uma subtileza nas sugestões e cores, nas cadências, e é dentro de um quadro ortodoxo que nos vai impondo aquele desvio e a sua sensação de êxtase. Começa-se a ler com um pequeno anzol na boca, mas, às tantas, estamos dominados por aquele fio. E este é um efeito típico destas novelitas de Aira, pois chega sempre uma certa altura em que a coisa começa a variar, a torcer, a inclinar-se. O que a certa altura nos parecer uma digressão, uma concessão do processo narrativo a um entusiasmo passageiro, subitamente apossa-se da história, torna-se o seu cerne.
Natural de Coronel Pringles, uma pequena cidade no sul da província de Buenos Aires, onde nasceu em 1949, César Aira entende que o elemento essencial da ficção, o impulso que a define se prende com a tentação de desarticular a realidade, de introduzir nela um elemento contrafactual, um “como se”. A ficção impõe-se como um procedimento que serve para que o pensamento possa ir além dos limites do seu conhecimento. É o uso da hipótese, da experimentação – centrais a qualquer investigação científica –, que a narrativa de ficção vai levar a um extrema e, muitas vezes, até com prejuízo para a tal da realidade, que a partir do momento em que estamos no campo literário deve sempre ser observada com suspeição. Ora, não se pode verdadeiramente construir uma relação tensa com a realidade que nos rodeia sem se supor “estrangeiro, louco, ingénuo, gigante, artista”… Por essa razão, o ficcionista deve proceder “como se” pudesse ausentar-se da sua pele, colocar-se na pele do outro, e o engenho romanesco passa por se entregar de tal modo a essa vertigem hipotética que às tantas aquele que escreve se perde no enredo e na expressão que inventa, tornando-se um estrangeiro definitivo.
Toda a literatura, como assinalou Musil, depende da sua condição extraterritorial. A propensão para o estrangeiro é comum à melhor parte dos narradores. O que lhes interessa é alcançar o novo mundo, e buscam indicações, pistas naquilo que possa soar paradoxal, obscuro, enviesado. A imperfeição diz-lhes mais, e transformam-se, por isso, nesses caçadores de inconsistências, perseguindo ambientes ricos em irregularidades. A realidade parece mais autêntica nos momentos em que cede, se mostra vulnerável, e nunca nos cativa mais do que nas alturas em que produz fenómenos absurdos, inexplicáveis. É essa lição de incerteza que seduz qualquer viajante, sendo certo que a estranheza com que regista os dados que recolhe provêm não tanto das suas observações como do seu esforço de interpretação. A falta de hábito, dessa finação de si mesmo diante de alguma evidência, é que produz um elemento de fantasia. Em “Um episódio na vida do pintor viajante”, Aira tem como personagem central o paisagista de Augsburgo Johan Moritz Rugendas (1802-1858), um artista que se identificava como um pintor de género, sendo este a fisionomia da Natureza, um procedimento que fora inventado por Alexander van Humboldt (1769-1859). Este polímata alemão, também ele um viajante incansável, foi um grande naturalista e teorizou sobre os princípios de uma espécie de “geografia artística”, definindo assim um modo de captação estética do mundo, uma ciência da paisagem. No entender deste “sábio totalizador”, o meio mais competente para apreender o mundo na sua totalidade seria o visual, e o geógrafo artista deveria endossar os seus esforços no sentido de captar os traços fisionómicos característicos de uma paisagem, e entendia que “só nos trópicos se encontrava o excesso necessário de formas primárias para caracterizar uma paisagem”, e que essa caracterização teria de vir da “soma das imagens coordenadas num quadro abarcador”. Ora, Rugendas, fez duas viagens à pampa argentina para captar os portentos dessa região selvagem, tendo-se afirmado como o mestre da tal “fisionomia da natureza”. É certo, como nos diz Aira, que se encontrava no meio de uma natureza tão estimulante por lhe aparecer como uma novidade constante, com os seus “pássaros sem protocolos nem postergações, lançando cantos estrangeiros logo pela manhã”. Ali fauna e flora enredam-se numa trama de um exotismo enervante, e Rugendas sente-se capturado por um jardim das delícias terrenas onde o natural assume sempre uma força sobrenatural. Assim, o método que quase um século depois irá ser chamado de surrealista, adequa-se perfeitamente a fisionomia daquele mundo. E Rugendas tenta agarrar nos seus esboços e estudos a óleo uma realidade em que tudo o desafia e excede. Ali alguns dias de caminho chegam para lhe desarranjar as noções de escala, pondo-o diante de seres que estão bem à altura do seu entusiasmo e curiosidade. A vida parece medir-se em eras geológicas ali, e são-lhe dadas as condições ideais para aplicar aquele seu procedimento, como se as suas representações servissem para registar de forma realista e, ao mesmo tempo, classificar e hierarquizar cuidadosamente espécimes selvagens. Havia um esforço em trazer de volta uma informação de valor científico sobre uma realidade estranha ao mundo europeu, mas à medida que o relato se desenvolve uma subtil inquietação vai dominando a leitura, como se aquele viajante estivesse empenhado em superar as limitações do seu registo, ir além das fronteiras do seu estilo. Ainda antes de nos descrever o tal “episódio”, que funciona como o eixo deste relato, Aira admite a possibilidade de que objectivo secreto da longa viagem de Rugendas seja ir ao encontro daquele mundo, do “vazio misterioso que estava no ponto equidistante dos horizontes sobre as planícies imensas”, e que lhe poderá revelar “o outro lado da sua arte”. A viagem passa a ser sobre essa busca, o esforço para ir ao encontro desse lugar místico onde a realidade se dissolve, a arte derrota o artifício, e o céu encontra a terra. É nesse ponto impossível onde se espera por algo que viesse “finalmente, desafiar o seu lápis e obrigá-lo a inventar um novo procedimento”. Percebe-se que o pintor está disposto a pagar um preço exorbitante para alcançar esse outro lado. E a transformação de Rugendas vem a ter lugar, como prometido, nas planícies argentinas. Já lá iremos.
Antes convém assinalar como nestas páginas, em vez de descrições vibrando pela força do detalhe, por aquela indução de um encantamento algo barroco marcado por uma visualidade exuberante, as visões são dominadas pela linguagem, e é mais fácil sentir-se tomado pelas meditações que a todo o momento se vão impondo do que pelo desafio de textura ou cenas que façam sentir o olho da imaginação a lacrimejar pelo excesso desses elementos propriamente visuais, e sempre que uma descrição se estende e dispõe algum horizonte, este não deixa de ser meio desfocado, nebuloso ou alucinatório. Neste regime narrativo não encontramos, assim, realidades intactas, tudo serve uma dimensão subjectiva. A partir de certa altura, damo-nos conta de que Aira parece aplicar-se corrosivamente a desafiar a noção de exotismo, esta que se impõe aos territórios periféricos e que tende a condensar-se em elementos pitorescos, tornando-se cada vez mais intrusiva, na medida em que o exotista vai ao outro lado do mundo para impor uma visão instantânea, uma superficialidade retumbante, que se satisfaz com impressões imediatas, traduzindo sob a forma do grotesco aquilo que já sabe, já viu, e nada mais que isso. “Levada às suas últimas consequências, a lógica do exotismo deveria revelar uma estranheza radical, que não coubesse nos moldes mentais ou linguísticos do viajante. Ao chegar lá, ao trópico ou à ilha perdida não deveria encontrar o que já conhece mas algo de tal modo distinto que apenas possa ser contido por uma nova língua, um novo saber”, escreve Aira num ensaio dedicado a este tema.
Esta novela é um sagaz desacato, um confronto com as formas protocolares de representação, esses mitos através dos quais se mantém o desconhecido à distância, sendo a estratégia do essencialismo um modo defensivo das culturas temerosas do contacto com os outros. E Aira vai de uns pontos aos outros por arrasto, por acção desse olhar que se detém e cobre de suspeita qualquer lugar-comum. Ele chega a definir o seu “procedimento” enquanto escritor como algo a que chegou sem ter como foco a arte da narração, uma vez que, segundo ele, nunca lhe importou relatar, nem construir nenhum desses enredos que habitualmente os leitores esperam dos autores. “Os meus livros são romances por acidente; aproveitei o acaso histórico (ainda que este não seja um acaso acidental) de que nos nossos dias a palavra ‘romance’ é um passe-partout que cobre quase tudo. (…) O meu modo de viver e de escrever ajustou-se sempre a esse procedimento tão denegrido da ‘fuga para a frente’. E isto é uma fatalidade de carácter à qual me resignei há muito, sendo que no romance encontrei o meio perfeito para lhe dar vazão. Com o romance, aquilo de que se trata, quando alguém se propõe meramente a escrever romances como todas as outras, é de prosseguir escrevendo, de que o ímpeto não morra à segunda página, ou à terceira, ou que seja rendido por um outro, que nos permita continuar a escrever. Descobri que se se faz as coisas bem feitas, tudo pode acabar cedo demais; ou, pelo menos, pode amofinar-se a ânsia de seguir em frente, o motivo ou estímulo válido, deixando em seu lugar uma inércia mecânica. De modo que ao fazê-lo não tão bem (ou melhor: fazendo-o mal) ainda nos resta uma razão genuína para seguir adiante: justificar ou redimir ou que escrevo hoje com o que escreverei amanhã.”
Estas confissões são arrancadas do ensaio “Ars Narrativa”, que integra o volume de artigos e ensaios dispersos “La ola que lee”, e trata-se de um ensaio que explicita bem o compromisso aventuroso de uma escrita que recusa conformar-se com os habituais mitos que servem à promoção dos valores literários. Em vez de se conformar a uma zona prestigiada da tradição, a um lugar no panteão da mitologia exuberante e convulsa que se vai organizando a favor das excursões que se fazem segundo esse impulso dominante do global, Aira prefere esquivar-se, debilitar essas lógicas totalizadoras. “O meu estilo de ‘fuga para a frente’, a minha preguiça, a minha procrastinação, levam a que me seja preferível este método ao de voltar atrás e corrigir; cheguei ao ponto de não corrigir nada, e deixar tudo como me saía, a uma completa improvisação definitiva. Mais que isso: encontrei neste procedimento o modo de escrever romances que avançam em espiral, voltando atrás sem voltar, avançando sempre, identificados com um tempo orgânico… Romances biónicos, mutantes… E não creio que me tenha distanciado muito da essência do romance, género autojustificatório por excelência. (…) De qualquer modo, o romance é um género literário entre outros, e levá-lo muito a sério pode ser grave para a liberdade constitutiva do nosso ofício”… Neste ponto, não é difícil cruzar estas considerações de Aira com as do seu pintor viajante: “Vista por cima do ombro, a paisagem voltava a suscitar-lhe velhas dúvidas e questões vitais. Perguntava a si próprio se seria capaz de tomar conta da sua vida, de ganhar o seu sustento com o seu trabalho, isto é, com a sua arte, se conseguiria fazer o que todos faziam… Tinha-o feito até então, e muito bem, mas tivera a seu favor o impulso adquirido na Academia, a aprendizagem em geral e a energia da juventude. Já para não falar da sorte. Tinha as mais sérias dúvidas de que essa capacidade pudesse manter-se. Afinal de contas, contava com o quê? Com o seu ofício e praticamente mais nada. Não tinha casa nem dinheiro no banco, nem talento para os negócios. O seu pai morrera, e ele vivia há vários anos a deambular por países estrangeiros… Este último facto tornava-o especialmente inclinado a pensar que ‘se os outros conseguem…’. Com efeito, todos aqueles com quem se cruzava, nas cidades e aldeias, nas florestas e montanhas, arranjavam forma de manter a sua vida à tona; mas estavam no seu contexto, sabiam a que agarrar-se. Ao contrário dele, que estava à mercê da sorte. Quem lhe garantia que a arte fisionómica da Natureza não passaria de moda, deixando-o isolado como um náufrago no meio de uma beleza inútil e hostil? De repente, a sua juventude já quase tinha passado e ele continuava sem conhecer o amor. Empenhara-se em viver num mundo de fantasia, de conto de fadas, e se nesse mundo não aprendera nada de prático, pelo menos aprendera que o relato se prolongava sempre e novas alternativas esperavam o herói, mais extravagantes e exigentes do que as anteriores. A poreza e o desamparo eram apenas mais um episódio. Poderia acabar a pedir esmola à porta de umaigreja sul-americana. Porque não? Tratando-se dele, nenhum temor era exagerado.”
Retomando a acção da novela, é quando tentam chegar a San Luis, vendo-se perseguidos, Rugendas e os seus companheiros, durante dias por um zumbido esquivo e por uma paisagem árida, que, por fim, o guia revela a origem deste: gafanhotos. “A praga bíblica passou por aqui.”
Sem vegetação, os cavalos esfomeados dos viajantes estão prestes a amotinar-se, e Rugendas decide cavalgar o mais rápido e o mais longe que puder em busca de erva, indicando ao amigo, o medíocre pintor alemão (Robert Krause) que o acompanha, que faça o mesmo, seguindo na direcção oposta. Krause mostra relutância em separarem-se, mas Rugendas, ignorando-o, dispara a galope. Logo que se afasta o tempo mudo, uma tempestade abate-se sobre ele e o seu cavalo, mas o pintor fica fascinado por ver o céu expor-lhe as entranhas, espantando-se com a cena, que nos é descrita como “uma escuridão com visibilidade”. E apesar do perigo, reconhece uma vantagem: “Pelo menos vai refrescar.” Aira adianta que “esta frase trivial foi a última que conseguiu formular de forma coerente e completa, o último pensamento da sua juventude e de toda uma etapa da sua vida”. E então é alcançado pelo primeiro relâmpago… “Como uma estátua de níquel, homem e animal electrizaram-se. Rugendas viu-se a brilhar, espectador de si mesmo, num instante de horror que infelizmente se repetiria.” Apenas quinze segundo depois são fulminados pelo segundo raio, mais forte e com efeitos bem mais devastadores. Rugendas acaba por sofrer ferimentos mais graves quando, tendo ficado com um pé preso no estribo, se vê arrastado pelo cavalo por uma longa distância, e se a maior parte do corpo ficou ilesa, lhe desfigurou inteiramente o rosto, deixando-o com os nervos expostos, desalinhados e impedindo posteriormente a sua cicatrização. A partir daí, experimenta dores lancinantes e constantes contracções e espasmos musculares, para cujo alívio recorre a quantidades maciças de morfina. Assim, este pintor de excentricidades naturais virá a ser dominado pela mais terrível das ironias encontrando no espelho, e na sua própria fisionomia, o maior dos elementos de pavor, incapaz de dominar as suas expressões, em distorções caóticas, e sendo dominado por terríveis dores de cabeça. Obsessivo, quase fanático, continua a pintar, mergulha a fundo nas suas representações. “Afinal, a arte era o seu segredo. Tinha-o conquistado a um preço exorbitante. No preço somava-se tudo. Por que razão não haveria de somar também o acidente, e a transformação que se seguiu? No jogo das repetições, na sua combinatória, até ele podia passar despercebido e funcionar oculto como mais um avatar do artista”, escreve Aira. E Juan Villoro num dos seus ensaios críticos vinca como o acidente vem estabelecer um laço tonificante entre o seu aspecto e a sua arte. “Se, como nos diz Lichtenerg, padecer de um defeito físico ajuda a ter uma opinião própria, Rugendas converte-se torna-se um provedor de ideias autênticas. E a sua singularidade tinha sido paga a um preço de fogo; essas convulsões que buscava na paisagem agora conformam a sua anatomia.”
Ao longo da segunda metade desta breve novela, Rugendas vai começando a assumir as características daquelas forças que até ali pareciam ameaçá-lo, vendo-se comparado com esses elementos naturais extravagantes que ele quis captar enquanto objectos no seu esforço de representação. “O procedimento humboldtiano era um sistema de mediações: a representação fisionómica interpunha-se entre o artista e a Natureza. A percepção directa ficava, por definição, descartada. E, no entanto, era inevitável que a mediação caísse, não tanto pela sua eliminação, mas mais por um excesso que a tornava mundo e permitia apreender o próprio mundo, despido e primitivo, nos seus sinais”, escreve Aira.
Alfred Jarry terá dito: “Chamo de monstro toda a beleza original e inesgotável.” No caso de Rugendas, foi a sua determinação em cruzar o espaço e roubar o próprio fogo com que a beleza rasga este mundo que o fez entrar em combustão, tornando-se monstruoso. “A beleza é insuportável”, advertia Camus. “Conduz-nos ao desespero, oferecendo-nos apenas por um instante esse vislumbre de uma eternidade que gostaríamos de estender sobre todo o tempo.”
Isto explica que o acidente não tenha impedido Rugendas de pintar, mas parece antes tê-lo absorvido inteiramente na condição desse ser que reside na fronteira, e que está marcado pelo tráfico entre dois mundos. Com o passar do tempo, com a ajuda da morfina, vai aprendendo a domar o seu estado alterado (e em constante alteração) de forma a fazer-se valer dele, obtendo um conhecimento ainda mais profundo, uma proximidade de tal ordem que se perde de todo na realidade que representa. “Para si mesmo, um monstro não pode ser mais do que natural, uma vez que a sua desordenada constituição passa a ser o seu sistema de referências”, esclarece Villoro. “Depois do acidente, Rugendas altera o seu método de trabalho. Atravessado pelo relâmpago, vai submeter-se a uma mestiçagem natural, integrando no seu desmedido entorno, tornando-se um com aquilo que observa. (…) Rugendas capta a realidade como só o pode fazer alguém imerso nela. (…) O mundo telúrico fica ao seu alcance, sem mediações nem segredos, mas ele já não pode usufruir da distância para comunicar o seu mistério. A técnica do monstro está mais próxima do rito que da arte: o pintor desfigurado não retrata; é idêntico à obra.”
Este crítico mexicano adianta ainda que, ao ver-se transfigurado pelo seu objecto, “Rugendas passa ao outro lado da contemplação antropológica: vê a partir de dentro e esta autenticidade impede-o de se traduzir para leigos”. Assim, esta novela detém-se sobre esse elemento paradoxal do conhecimento, quando este se integra de tal modo através da experiência que obtém de uma realidade que, a partir dali, só é possível transmiti-lo em condições especialmente propícias, ou seja, abrindo espaço para forçar uma percepção que se toma a partir da condição estrangeira. Porque o próprio conhecimento deve pagar o preço das sucessivas errâncias a que se submete, e sem esse esforço, sem ter superado os limites anteriores, não significa nada.