O Matuto está abatido. Na “Casa das Pontes”, o ar está pesado. O falecimento de Luis Fernando Veríssimo, a todos prostrou. Até o Óscar, a lagartixa das ‘Pontes’, anda meio cabisbaixo. A malta reunida na “Casa das Pontes”, só fala no passamento do chorado. A Belinha – a visita conservadora das ‘Pontes’ – diz que admirava o seu fino humor. O Marcello – a visita reaccionária – fala do seu talento como saxofonista: “o Veríssimo teve uma banda de Jazz. Segundo ele, era a sexteto mais pequeno do mundo porque só tinha cinco elementos”. “Típico”, exclamou o Sr. Rocha – a visita letrada das ‘Pontes’ – “eu gosto quando ele afirma que o casamento é encontrar aquela pessoa especial que você quer irritar para o resto da vida”. O Matuto, sorrindo, deu mais um gole no cálice de Porto Ferreira branco, lançando um olhar cúmplice à estante onde repousa o livro de crónicas culinárias, “A Mesa Voadora”.
Neste ambiente anuviado, a Belinha sai-se com uma história mirabolante: “Dizem que é verdade o que vou contar. O Veríssimo conheceu um escritor que sendo já velho e farto de dias, recolheu-se debelitado a um apartamento de águas furtadas, na zona da Lapa, no Rio de Janeiro. Esperando que a tuberculose se esquecesse dele, por lá definhava, arrumando-se para morrer com decência. Pouco comia, e muito tossia. Vez por outra, um companheiro de antigas farras aparecia. Davam umas risadas, bebiam um licorzinho… Mas quem lhe valia mesmo, era o Sr. Trancoso, um Português careca mas sadio, homem realista e sentimental, como só os da sua raça sabem ser. Era o Sr. Trancoso, porteiro do prédio que lhe limpava o quarto, trazia pão e leite e lhe dava as últimas novidades do mundo lá fora enquanto narrava tropelias bucólicas do seu Alentejo. O escritor, esse esperava serenamente a sua morte, com a paciência dum monge Tibetano.
Um dia, o Sr. Trancoso bate à porta do quarto e de mãos atrapalhadas balbucia: “sua senhoria, vai-me desculpare mas eu preciso dar-he uma palavrinha”. “Fala aí Trancoso. O que aconteceu?” “É que, sabe, eu nem sei como lhe dizere…” “Ó homem desembucha” – exaspera-se o idoso escritor (quem diz que os Portugueses são muito directos, não conhece essa gente). “Eu tenho um reparo a fazere”. “Conta, homem, conta” – encoraja o escritor. “Sabe, eu tenho afeição com sua senhoria, juro pela saude da minha mãezinha que está no céu, mas tenho de lhe dizere isto. Sua senhoria não anda nada bem e já está com os pés para a cova”. “E daí Trancoso! Eu vou deixar dinheiro para o funeral. Não há problema”. “Mas o problema é outro, Sua senhoria”. “Que maçada! Qual é então o problema?” “O caixão!”. “O caixão” – espanta-se o ilustre escritor. “É que andei tirando umas medidas e o caixão não vai cabere no elevadore. Sua senhoria, me perdoe, está muito grande. Precisamos de tomar providências senão é o diabo à solta”.
E, na verdade, dizem as más línguas que apesar da doença, o conceituado escritor estendia-se 2 metros a partir do solo, e ostentava uns redondos 120 kg de carnes e massa óssea. Uma carga de trabalhos para qualquer agente funerário que se preze. Foi o afamado escrivinhador que sugeriu: “o caixão vai pelas escadas”. “Também tirei as medidas. Estes prédios são antigos e é tudo muito estreto”. Aí o escritor decidiu passar à acção: “vamos resolver já isto”. Saíram do apartamento e o Sr. Trancoso parou uns 2 metros já no vão da escada: “o senhore segura daí que eu seguro da banda de cá”. E os dois começaram a transportar escada abaixo um imaginário caixão com os restos imaginários do escritor numa procissão imaginária. “Levante um poucochinho… um bocadinho para a direta. Levante a cabeça do falecido que eu levanto os pés… o senhore vê, nessa quina, o bicho empanca”. O Sr Trancoso orientava a experiência fúnebre com galhardia e com o ardor dos que sabem das coisas. Já no rés do chão (térreo, no Brasil, por favor) o escritor doente, cansado e suado, suspirou: “Você tem razão ó Trancoso. Isto vai ser uma trabalheira danada”. “Senhore, sem falsa modéstia eu dou um jeto. É que vagou há dois dias um apartamento no térreo. Lá não vai ter complicação. De lá o caixão sai fácil que nem uma canoa”. Assunto resolvido – remata a Belinha, e acrescenta: “uma semana depois, o corpo do escritor saiu facilmente, num caixão enorme, para o cemitério. E o Sr. Trancoso chorou, como só os da sua raça sabem chorar.
Que história deliciosa, matuta o Matuto. E, como será, nos aconchegarmos para esperar tranquilamente a morte!? Todos tentamos manter a dita cuja à distância com injecções, operações, cirurgias, xaropes, comprimidos, massagens, infusões, transfusões, fricções, antibióticos, penecilinas, ginásticas… tudo redundando em inutilidade. Porque está “destinado ao homem morrer uma vez” – diz a Bíblia (Heb 9:27). Por outro lado – considera o Matuto, batido pelo vento de décadas – há meios muito eficazes para acabar com a vida: a faca, a pistola, a espingarda, a bomba, a metrelhadora, o canhão, o drone, o avião, o submarino, o arsénico, o cianeto, o veneno para ratos, o mosquito da dengue, da malária, a empada, o marisco, o vigésimo-quinto andar, o mar, o gás, a cornada, a pedrada, o AVC, o cancro, o ataque cardíaco, os carros, as motos, as selfies, a heroína… Afghh! É a presença constante da morte que nos ausenta de pessoas queridas. E a perda irreparável de dons precisosos que se perdem além túmulo. Quem irá escrever do jeito do Luis Fernando Veríssimo? É essa perda que deveríamos prantear – sugere o Matuto. Afinal, a morte rouba-nos coisas, mas a morte dum escritor rouba-nos vivências, como só os da raça do Veríssimo sabem viver.
*Crónica, naturalmente, dedicada a Luis Fernando Veríssimo. Como diz Ana Isabel Albuquerque: ‘O facto de guardarmos tudo numa “nuvem” pode fazer com que esta crónica chegue a ele’.