O Matuto e a Inteligência Artificial

Matuto entende destas coisas e acha que a inteligência artificial deveria ser usada para o bem-estar da humanidade. Inventar uma bebida alcoólica que não dê ressaca, um cigarro inteligente que não provoque cancro (câncer, no Brasil, por favor) ou uma doença super benigna.

O Matuto sente-se ligeiramente ameaçado. Há muitos anos que o Matuto ‘ganha tostão para o pão’ ensinando Inglês. Agora, vêm os bonitinhos da Maça Dentada, anunciar com o seu bichinho nº 17, que o fim das barreiras entre idiomas está próximo. “Este novo dispositivo consegue fazer tradução em tempo real usando IA” – é a promessa. O Matuto não é contra o progresso. Todavia, acha que este mecanismo vai transformar o mundo num espaço sem graça. Os equívocos vão morrer. Toda a gente se vai entender. Qual a piada disso!? A famosa expressão (que até deu um filme supimpa da Sofia Coppola, protagonizado pelo Bill Murray e pela Scarlett Johansson) “Lost in Translation” – que indica uma perda de sentido nas traduções – vai… perder o sentido. O grande sacrificado no altar do progresso vai ser o ‘humor’.

O Matuto lembra-se duma reunião de gente boa – quando era Matutinho – em que um senhor Americano implorava por uma “solteira”. Ninguém entendia o desespero do homem, e até achavam de mau tom esta insistência numa “solteira”. As damas presentes achavam que uma “casada” certamente daria conta do recado. Que maçada! Mas, o Americano entrava em detalhes: “quero uma solteira bonita e bem decorada”. Os olhares de soslaio devem ter alertado o cidadão para a estranheza da situação. Finalmente, os equívocos foram alisados. O pobre homem queria uma “cadeira”.

Há muitas luas o Matuto tinha um amigo, o Luís, que tirava sarro de tudo e todos. Viveu alguns anos em Nova Yorque e o divertimento favorito do Luís era traduzir literalmente para o idioma de Sua Majestade, os provérbios Portugueses. “Cada macaco no seu galho” e “tens macaquinhos no sótão”, eram mato, no linguajar colorido do Luís. Os Americanos (norte americanos, no Brasil, por favor), ficavam de cara à banda com os “every monkey in its twig”; “you have monkeys in the attic”. Um dia numa ‘drugstore’ – farmácia – que nas Américas do Norte vendem de tudo, o amigo do Matuto pediu por cigarros. O farmacêutico indicou a máquina de cigarros bem do lado do Luís. Este exclamou “if it was a snake, it would bite me” (se fosse cobra, mordia-me). Foi o caos! O povo saiu correndo. O farmacêutico deu um pulo de susto: “snake! Snake! Where?” – cobra! Onde? O Luís ficou tão espantado que paralisou. Petrificou. A sua pasmaceira foi interpretada como terror, de quem tinha mesmo visto um bicho.

Ora, com esta ignóbil engenhoca, que tudo traduz em tempo real, a vida será mais insossa. Sem tempero! O Matuto já teve encontros imediatos com inteligências artificiais. Um carro Matutino insistia em avisar quando o cinto não estava botado no lugar. A voz robótica ameaçava: “é favor colocar o cinto. É favor…” “Clack!” O Matuto colocava o cinto só para calar a maldita. Na revisão seguinte o Matuto pediu ao primo Américo, o melhor mecânico da Margem Sul, para cortar o pio à desalmada. Cortou-se as amígdalas à dita, e foi um descanso. Toma que já almoçaste! Afinal quem é o inteligente?

Mas, o insólito aconteceu quando o Matuto e Dona Sirlei, a gentil esposa do Matuto, se instalaram num hotel com muitas estrelas, lá para os lados de Évora. Já no belíssimo quarto, o Matuto sucumbiu a um apelo da natureza. A sanita (vaso sanitário, no Brasil, por favor) era um portento da tecnologia Alemã. O Matuto aproximou-se e já a tampa se levantava suavemente (em emergências, seria suave demais). Camuflada nas paredes a canção “Help” (totalmente adequada) dos Beatles. O Matuto instalou-se regiamente para as funções corporais. No final, tendo acionado o autoclismo (descarga, no Brasil, por favor), houve um esguicho maroto que espirrou água bem no centro anatómico do Matuto. O matuto deu um salto acrobático. Mas que brincadeira é esta! Pois é! É a inteligência artificial a vingar-se do corte das amígdalas da sua irmã automotiva. Toma, e embrulha!

Encontros imediatos à parte o Matuto entende destas coisas e acha que a inteligência artificial deveria ser usada para o bem-estar da humanidade. Inventar uma bebida alcoólica que não dê ressaca, um cigarro inteligente que não provoque cancro (câncer, no Brasil, por favor) ou uma doença super benigna. Doença boazinha que não nos deite abaixo. Tipo, uma gripe que não cause tosse nem provoque espirros, nem dê febre (o Matuto tem horror à febre). O cidadão comum teria a doença, mas sem os sintomas. E, para não desconsiderar o vírus, o doente teria um cartão de saúde, passado pelo Sindicato da IA, a atestar que sim senhora, a pessoa tinha mesmo uma gripe gerada por IA. Portanto, inofensiva e moderna. “Estás com gripe?” “Sim, claro”. “É que nem parece” – e o ‘gripado’ apresentava o cartão: “gripe gerada por IA. Favor dar todo o auxílio médico ao portador desta doença inteligente”.

E se, por acaso, a IA ainda inventar uma forma de emagrecer enquanto dormimos, o Matuto até se oferece para cobaia. Mas só se não tiver efeitos secundários… como acordar de manhã a dar ordens militares ao gato, convencido de que é Napoleão; ou cantar fado desafinado às três da manhã, para desespero da dona Sirlei. Aí, francamente, é melhor ficar rechonchudo. Gorducho, mas em paz com Dona Sirlei.