Polemista implacável, mordaz e provocador, cativou espíritos como Shelley, Dickens, Thackeray e Stevenson. Foi ainda pintor, filósofo, memorialista, biógrafo e pensador político. Cerca de 200 anos após a morte de William Hazlitt, a sua obra chega aos leitores portugueses com uma seleção de dez ensaios célebres sob o título O Prazer de Odiar e Outros Ensaios.
Não deveria surpreender-nos o ambiente de crispação em que se dão, por estes dias, os debates em torno de questões culturais. Basta considerar como tantos equívocos dos que logo contaminam o campo político nascem de uma inapetência geral para apreciar textos de natureza literária, sendo que a incompreensão das suas qualidades metafóricas, leva a que sejam interpretados abusivamente como comandos, fontes de uma astrologia judiciária, quando não passam de obras de inspiração cujo apelo se deve à capacidade de excitar os sentidos, compelir a imaginação e deslumbrar.
A degradação das faculdades poéticas, em vez de uma admiração diante da abertura e diversidade das formas, dos modos como a espécie enfrenta a realidade, e a cerca, procurando conhecê-la, leva antes a uma atitude de prepotência, que é sempre sinal de uma mentalidade tacanha, condenando muitos não apenas a uma compreensão redutora, mas a uma forma de exaltação que depressa se organiza como um enredo persecutório, denunciando toda a diferença como heresia. Assumindo uma chave literalista quando se lançam sobre textos antigos, provindos invariavelmente do cruzamento de inúmeras influências e que adquiriram um prestígio fundacional em resposta a movimentos históricos que tantas vezes nos escapam, estes “fiéis” adoptam-nos como dogmas, ansiosos por extrair deles uma série de preceitos e orientações e fundamentar uma sufocante rede de coerções. Vemos, então, surgir toda uma classe de pressurosos legisladores, empunhando este ou aquele livro nos quais os valores transmitidos ao longo de gerações se vêem arrancados ao seu contexto e difundidos como a expressão de uma vontade divina, servindo-se os intérpretes de um aparelho de intimidação para que as suas leituras não sejam questionadas, ao mesmo tempo que se desobrigam de um esforço de abarcar realidades desconhecidas, contrastando esses ensinamentos com outros. Preferem rebaixar todo o senso comum a distinções absolutistas entre o bem e o mal, colocando-se numa posição subserviente em relação “a máximas tradicionais e noções preconcebidas tomadas cegamente por verdades, aumentando assim o absurdo das coisas conforme o tempo passa”. Como William Hazlitt (1778-1830) assinala num dos seus ensaios, “pode supor-se que o cúmulo da sabedoria humana consiste em manter contradições e sacralizar disparates”, e acrescenta que “não há dogma, por mais cruel ou desvairado, em direcção ao qual estas pessoas não tenham içado as velas e que não tenham tentado impor ao entendimento dos seus seguidores como vontade dos Céus, revestido de todos os terrores e sanções da religião.” Ora, este tipo de fervor pôde gerar formas de inanidade despóticas e enredos tenebrosos que consumiram épocas inteiras, tendo a capacidade de reunir aqueles espíritos cuja devastação interior e impotência apenas pode ser saciada lançando sobre os outros a mesma humilhação e sofrimento que tanto os faz remoer. E, nos nossos dias, os mecanismos de contágio acelerado, neste quadro da mente viral, permitem que uma opinião se desloque e espalhe como uma praga alimentando-se desses ressentimentos que, a coberto de uma acusação qualquer, se reforçam e são esconjurados. Hazlitt entende que a universalidade do coro é muitas vezes o único fundamento de uma opinião, e adianta que, “quando o clamor atinge o ponto máximo, quando se faz ouvir em toda a parte, quando gera uma tempestade perfeita, quando ‘o mundo vibra com o seu ímpeto vão’ – aqueles que se mostram mais empenhados em ouvi-lo e ecoá-lo nem sabem de que se trata, nem estão inteiramente persuadidos de que o seu juízo não seja falso, malicioso e absurdo”. “É como o vento, que ‘ninguém sabe de onde vem nem para onde vai’. É vox et praeterea nihil. O que será, então, que lhe dá a sua confiante circulação e força irresistível? É o volume do órgão em que é pronunciada, os portentosos pulmões da multidão; o número de vozes que a retomam e repetem porque outras fizeram igual; o voo rápido e a natureza impalpável da fama comum, que torna desesperada qualquer tentativa individual para inquirir ou deter o engano que, com o bulício ensurdecedor ou a revoada solta dos risos e bramidos de indignação, torna impossível à pequena e pacata voz da razão fazer-se ouvir e não deixa outro rumo à honestidade e à prudência senão deixar-se cair a seus pés, como que perante uma tempestade pestilenta no deserto, e esperar que passe.” O que resulta claro é que, se a opinião pública sempre esteve sujeita aos desígnios desses órgãos que a proclamam, nunca como hoje os meios de difusão foram capazes de modular e, em certo sentido, antecipar a própria mensagem, amplificando os elementos escandalosos e falsos que absorvem todo o enredo numa farsa inescapável. E, de um certo modo, é evidente como não são propriamente esses intelectuais com uma leitura de algum modo profunda ou presciente que assumem maior influência neste quadro, mas precisamente o género de oportunistas que se mostram mais aptos a instigar e acirrar os piores ânimos… “Então, tudo o que é necessário para controlar a opinião pública é apossarmo-nos de um órgão alto e potente quanto baste para nos fazermos ouvir, que tenha o poder e o interesse do seu lado; e depois, mal sopramos impetuosamente esta trompa da infâmia, como o corno pendurado na muralha de um castelo, somos atendidos, ecoados e acreditados de todas as partes: e os portões escancaram-se para nos receberem e somos admitidos no próprio seio da opinião pública, e podemos assaltar a partir de todos os baluartes com todos os engenhos de abuso, e com privilegiada impunidade, todos aqueles que se afoitarem a vindicar a verdade, ou a resgatar o seu bom nome das garras imorais da autoridade, da subserviência, do pedantismo e da falsidade venal! Tudo o que é preciso é dar o alarme – para excitar na mente pública o pânico de ser deixada ao desamparo, e a populaça (seja nas fileiras da literatura ou da guerra) acabará por depor as armas e render-se à discrição de qualquer tiranete ou impostor que, com certas contrapartidas, decidirá aplicar nela a experiência!”
Quase dois séculos após a sua morte, este apaixonante polemista inglês, este ensaísta intoxicante que, escrevendo para os jornais, cativou espíritos tão influentes como Shelley, Dickens, Thackeray ou Robert Louis Stevenson, embora ele mesmo tenha sido quase esquecido, parece ainda estar com o ouvido colado ao chão, captando cada abalo, interpretando o ímpeto das cargas que se avizinham. E não exige grandes cuidados dos seus leitores, parece acotovelar-nos como o mais arguto dos nossos contemporâneos, bastando que nos detenhamos sobre alguma das suas páginas. Abrindo ao calhas, mesmo que o assunto seja de pouco interesse para nós, aquela prosa traz com ela um sobressalto, um fragor, produz uma iridescência com cada um dos seus movimentos, derramando uma intensa radiância sobre os temas que toca, conseguindo absorver-nos em campos muito diversos. Com uma sagacidade e contundência espantosa, os seus juízos e apreciações sobre obras artísticas ou elementos do carácter humano sucedem-se, num estilo cheio de elegância, sendo a um tempo audacioso e mordaz, expandindo-se em devaneios que nos deixam na boca o gosto das nuvens de pó que levanta, o frenesi de um espírito impaciente, que cobre distâncias imensas, transmitindo aos ossos e às ideias um mesmo tremor. Hazlitt é capaz de instigar a mente na direcção do sublime num momento, e noutro lançar-se numa diatribe ferocíssima contra um ou vários alvos, e quanto mais o lemos mais a sua presença se entranha em nós, mais nos espanta como parece escrever tomado de uma tal urgência que a tinta mergulha na própria fibra do tempo, tatuando-se nele, deixando uma impressão de imortalidade rara. Não se trata de perfeição, é aquele vigor capaz de amarfanhar os séculos. Além de um tremendo ensaísta, nos vinte tomos que reúnem a sua obra, encontram-se aqueles textos que fizeram dele o maior crítico da sua época, dando atenção ao teatro, à pintura, à literatura e à filosofia, ocupando-se ainda das questões sociais e políticas do seu tempo, reagindo muitas vezes a quente, com um ânimo e uma truculência formidáveis, capaz de agarrar o eco de um qualquer acontecimento e dar-lhe uma descompostura monumental. Ele assume o papel do crítico como artista, como sugeriram já alguns leitores, servindo-se do título que Wilde deu a um dos seus diálogos, tendo de resto Hazlitt sido uma das suas referências. O grau de bulício e o vigor da sua prosa crítica elevam-na à condição de uma forma imaginativa de acção, de tal modo que, perante os seus textos, é impossível tomar a posição do crítico como um mero figurante ou um actor secundário que serve a repercussão de uma obra poética, de um romance, de uma peça de teatro ou de um quadro. O ponto central de Wilde, e que se adequa à intervenção de Hazlitt nos jornais, é que a crítica de arte é, na verdade, mais elevada, artisticamente, do que a própria arte, uma vez que, “sem a faculdade crítica, não há criação artística alguma digna desse nome”. Wilde defende que o “fino espírito de escolha e o instinto delicado de selecção” possibilitam a criação artística e que, sobretudo, estes são atributos críticos, em oposição aos criativos. “Cada nova escola, ao surgir, clama contra a crítica, mas é à faculdade crítica no homem que deve a sua origem. O mero instinto criador não inova, apenas reproduz.” O que Wilde assim exprime é um hábil paradoxo através do qual a compreensão comum da relação entre crítico e artista é invertida, sendo a simetria pristina desta inversão a sua execução subtil, que dá a Wilde a plataforma para levar a sua teoria a águas mais perigosas, ou pelo menos mais aventureiras. Ao declarar a crítica uma arte, “simultaneamente criadora e independente”, Wilde pode então conduzir a noção para o terreno da metafísica: “Na verdade, chamaria à crítica uma criação dentro da criação… Mais ainda, diria que a mais alta Crítica, sendo a forma mais pura de impressão pessoal, é, de certo modo, mais criadora do que a criação, pois tem o mínimo de referência a qualquer padrão externo a si mesma, e é, na realidade, a sua própria razão de existir, sendo, como os Gregos diriam, em si e para si, um fim.”
Esta ideia vem demolir a tão desorientada convicção que nos diz que um texto de análise ou comentário crítico nunca pode abrir o seu caminho para aquele grau de invenção dentro do imaginário que se reserva aos géneros canónicos. De resto, como demonstrou um dos seus biógrafos, Duncan Wu, na sua vasta colaboração na imprensa a dispersão dos registos de Hazlitt é tão grande que ali podemos encontrar os antecedentes para os mais diferentes géneros jornalísticos modernos, não apenas os diferentes ramos da crítica, como a crónica política, a coluna de opinião, o perfil dos grandes vultos ou celebridades e até a escrita desportiva.
Além disso, firmou créditos ainda como pintor, filósofo, memorialista e biógrafo. Mas um dos elementos centrais da sua personalidade escapa a esses atributos que normalmente se reconhecem num artista, e prende-se com a acção como pensador político, tendo-se distinguido enquanto polemista implacável que, sacrificando as suas próprias hipóteses de ascensão, defendeu uma posição radical que foi activamente perseguida no seu tempo. Atacou o privilégio e a monarquia, foi partidário ao longo da vida dos princípios fundadores da Revolução Francesa — democráticos, socialistas e assentes numa nova concepção de direitos humanos e liberdades seculares. Por essa razão opôs-se à guerra injusta e desnecessária conduzida pelas coroas da Europa contra a revolução republicana francesa, e ficou devastado quando o regime Bourbon foi restaurado em Paris em 1815, uma vez que isso significava que as monarquias absolutistas haviam derrotado o esforço de um povo para se libertar do feudalismo e tentar construir uma nova sociedade baseada na liberdade, na igualdade e na fraternidade. Assim, e ao contrário de muitos dos seus amigos de juventude, como Coleridge, Wordsworth e Southey, Hazlitt sofreu por ter permanecido fiel aos seus princípios, e nunca os trocou pelas honrarias ou pensões que o regime estendia aos seus apaniguados. E não se limitou a preservar as convicções que o marcaram na juventude, mas insurgiu-se contra os “apóstatas” que viraram as costas aos ideais da revolução. E é inegável que em boa parte os esforços para restabelecê-lo como elemento integrante do cânone têm partido de figuras da esquerda, incluindo o antigo líder do Labour, Michael Foot (1913 – 2010), que atribuiu a Hazlitt o mérito de ter dotado a “esquerda inglesa de uma perspectiva e de uma filosofia com um alcance tão vasto quanto Burke ofereceu à direita inglesa”. Foi também este político que, quando tinha 92 anos, criou a Hazlitt Society, cujos membros incluem, entre outros, o poeta Tom Paulin, o filósofo A.C. Grayling, e os professores de literatura Jon Cook, Uttara Natarajan e Duncan Wu, sendo que estes nomes se têm revezado numa série de reedições, antologias, biografias e textos de homenagem com vista a arrancar de vez Hazlitt à obscuridade. Este antepassado comum não apenas os guia através da profusão das suas intuições, mas serve ainda como exemplo moral perante o quadro político, sendo que nas últimas décadas toda a esperança posta em transformações radicais da sociedade tem igualmente enfrentado as deserções, o vira-casaquismo e falta de espinha dorsal dos líderes que acabam por assumir compromissos que atraiçoam estes valores.
Nos anos de juventude, Hazlitt ficara siderado ao ouvir Coleridge discorrer com uma desenvoltura e uma eloquência ímpares na defesa dos seus ideais revolucionários. Muitos anos mais tarde viria a escrever sobre a paixão e o ímpeto que lhe transmitiu, e como lhe ficou reconhecido pelo privilégio de ter passeado a seu lado enquanto ele se entregava a esses eflúvios, e como lhe causou uma sensação de horror, depois, ao ver como era capaz de virar as costas a uma graça tão bela e exaltante, e que, afinal, se invertia, expondo a sua superficialidade, a forma como o génio se atraiçoa a si mesmo. Southey e Wordsworth haviam expressado a mesma convicção e tumulto na defesa da Revolução, mas se nos últimos anos da sua vida, Coleridge e Hazlitt eram vizinhos, e ainda se falavam, mesmo que friamente, aqueles dois tornaram-se seus inimigos figadais, e os três beneficiaram de igual modo, enquanto funcionários e beneficiários de bolsas de um governo reaccionário, que desperdiçara os recursos do país num laborioso e sangrento esforço para extirpar aqueles princípios, a fim de preservar os privilégios que as classes favorecidas em Inglaterra julgavam ameaçados. Para Hazlitt foi tão dolorosa a traição daqueles que foram os seus amigos de juventude como o próprio fracasso das esperanças que haviam nutrido, e a forma que encontrou de apaziguar essa agonia foi fustigar incessantemente os apóstatas, sem lhes permitir esquecer a traição, nem consentir que a memória da “aurora venturosa” dos direitos humanos se desvanecesse de vez.
Depois de esgotar o impulso que o coração lhe dava encavalitando o sangue, recorreu à bílis, bateu-se para que a esquerda não renunciasse às suas aspirações, empregando de forma apaixonada todos os recursos, impacientando-se com todos os limites, para que os seus argumentos não se ficassem por uma superioridade de ordem moral, mas se obstinassem em dar uso à imaginação, construindo uma visão actuante. Ele queria um embalo a partir de imagens, um ânimo colérico e eloquente, a capacidade de assumir riscos, a elasticidade de uma prosa combativa e confiante, e não menos impetuosa nem selvagem ou mesmo injusta do que a de Burke. No ensaio que dedica à “poesia em geral”, ele vinca como esta, no sentido estrito, representa a língua da imaginação, e que a “imaginação é aquela faculdade que representa os objectos não como eles são em si mesmos, mas como são moldados por outros pensamentos e sentimentos numa infinda variedade de formas e combinações de poder”. Ele exigia no combate de ideias um vigor nada menos do que poético, no sentido de ser capaz de fazer a guerra através não apenas dessas intuições que emergem da parte moral e intelectual da nossa natureza, mas ainda da parte sensível, “do desejo de conhecer, da vontade de agir e do nosso poder de sentir”. O que mais o fascinava no jornalismo eram aquelas figuras capazes de reagir no calor do momento, que não se resguardam, mas são movidas por uma adesão absoluta a certos valores, ligando a sensibilidade artística a uma consciência insubordinada e a um dever de intervenção cívica, e, no seu caso, a uma identificação apaixonada com os direitos sociais e a um ódio visceral ao poder corrupto. Reconhece-se, por isso, atraído por oradores que são impelidos pelo que denomina “o embalo súbito da urgência” e que têm de moldar as convicções e os propósitos dos seus ouvintes enquanto estes se encontram sob a influência da “paixão e das circunstâncias — como o vidreiro molda o fluido vítreo com o seu sopro”. De resto, naquele ensaio dedicado à poesia, refere como o “pregador popular faz menos menção do Paraíso do que do Inferno. Pragas e alcunhas são só uma forma vulgar de poesia ou de retórica. Temos tanto gosto em alimentar as nossas paixões violentas como em ler a descrição das dos outros. Temos tanta inclinação para nos deixar atormentar pelos nossos medos como para nos regozijar das nossas esperanças de sucesso. Se perguntarmos: Por que razão é assim?, a melhor resposta será: Porque não conseguimos evitável. O sentimento do poder é um princípio tão forte na mente como o amor ao prazer. Os objectos de terror e piedade exercem sobre ela o mesmo controlo despótico que o amor e a beleza. É tão natural odiar como amar, desprezar como admirar, exprimir o nosso ódio ou desprezo como o nosso amor e admiração.” E depois adianta: “Não é que gostemos do que detestamos; mas gostamos de alimentar o nosso ódio e de brincar com ele; remoê-lo, exasperar a ideia que fazemos dele em cada exemplo de requintado engenho e em cada ilustração extravagante; fazer dele o nosso bicho-papão, apontá-lo aos outros em todo o esplendor da sua deformidade, incorporá-lo nos sentidos, estigmatizá-lo pelo nome, engalfinharmo-nos com ele em pensamento, aguçar o intelecto, armar a nossa vontade contra ele, saber o pior com que temos de lidar, e lidar com ele até ao fim. A poesia é só a mais alta eloquência das paixões, a mais vívida forma de expressão que pode ser dada à nossa concepção seja do que for, deleitoso ou doloroso, mau ou digno, agradável ou perturbador. É a coincidência perfeita da imagem e das palavras com o sentimento que temos e de que não conseguimos livrar-nos de outro modo, que dá uma instantânea ‘satisfação ao pensamento’. Esta satisfação é igualmente a origem do engenho e da fantasia, da comédia e da tragédia, do sublime e do patético.”
Até março deste ano, o leitor português não tinha qualquer introdução a esta obra, e o volume que faz enfim as apresentações, não sendo propriamente generoso (190 páginas), recolhe apenas 10 ensaios, mas a selecção, a introdução e a tradução de Ricardo Mangerona, a quem coube também a iniciativa desta obra que nos chega com o selo das Edições 70, são irrepreensíveis. Arranca e vai buscar o título àquele que é hoje o mais célebre dos seus ensaios, “Do Prazer de Odiar”, e logo no texto de apresentação, Mangerona faz saber como este pode bem ser o século que está prestes a naturalizar o ódio como a principal das nossas paixões. “Como assim? Linguisticamente é quase um paradoxo – mas depois lembro-me do século em que vivo, este mesmo que vulgarizou o anglicismo hater, e penso que faz sentido. O ódio existe, não só como sentimento, mas como prática social. Não haveria ódio se ele não proporcionasse alguma espécie de proveito para o indivíduo, seja mecanismo de defesa contra as armadilhas do mundo ou prazer puro e simples, gozo, recreação. (…) Hazlitt mostrou-me que não há nada de errado nisso, que quem odeia é mais completo, sobretudo se souber olhar para dentro, abrir o ódio ao meio e ver de que material é feito, porque esta é também uma via de autodescoberta. De certeza que a psicanálise já se debruçou sobre o assunto. O ódio é inato, orgânico, animal; desencadeia reacções fisiológicas, descobre linhas de pensamento, reaviva memórias, forja fantasias. (…) O ódio entretém; e se ‘ódio’ é uma palavra forte, pouco adequada a sensibilidades melindrosas, entendamo-la, como o autor, num sentido mais genérico: repulsa, rancor, resistência, alguma sede de vingança e um fascínio sádico e voyeurista pela desgraça alheia.” Este ensaio que abre a selecção, bem como aquele que se segue, “Do medo da morte”, são formidáveis, mostram-nos porque Hazlitt consegue ombrear com Séneca e Montaigne nos seus melhores momentos, numa prosa que é torrencial mas capaz de um encadeamento sumptuoso e que não cansa, antes soa coloquial, avança com uma intensidade que nos empolga. Se de acordo com as suas palavras, “a sociedade, aos poucos, se transformou numa máquina que nos conduz segura e insipidamente de uma ponta da vida até à outra, num estilo prosaico muito confortável”, ele busca aquele uso da linguagem que restabelece o nosso encanto, operando contra a sensação de rotina regular que dissolve na indiferença a nossa ligação a este mundo. A sua “mente parece-se com um prisma que decompõe os vários raios da verdade e os dispõe em diferentes modos e várias parcelas” (para fazer uma vez mais uso das suas próprias palavras). O seu génio liga-se, em parte, ao facto de ter passado a vida a escrever sujeito a prazos, a reagir a alguma coisa, e essa escrita sob pressão acolhe os impulsos do acaso, contrai todo o tipo de dívidas de forma a compensar os seus desequilíbrios, a resolver impasses. Não é de estranhar, por isso, o “excesso de citações mais ou menos retocadas, que fazem de certas passagens uma espécie de cadáver esquisito galvanizado de vida”, como anota Mangerona. Mas há também esse arroubo próprio de um animal acossado, que se sente colocado na linha de fogo, vulnerável ao espírito da época, lacerado por ele. E se alguns soçobram ao sentir o bafo do inimigo que o segue de perto, esperando que cometa um erro para se lançar sobre ele, outros há que sabem encontrar nessas circunstâncias um especial alento, uma força sombria e maligna. Os nervos aprendem a florir e cicatrizar depressa quando se está sujeito a frechadas vindas de qualquer ângulo, e se “as gazetas e pasquins, esse ginásio do ego”, como os descreve Mangerona, eram então “palco de acesas escaramuças, mas também davam azo à reflexão contemplativa de verdades mais ou menos filosóficas, a ensaios introspectivos hibridizados com alguma intriga sumarenta e uma boa crónica de costumes a pender para a reportagem”.
Hazlitt publicara o primeiro livro, sobre filosofia e metafísica, em 1805. Três anos depois casou com Sarah Stoddart e o casal foi viver para uma pequena propriedade que ela herdara em Winterslow, na Salisbury Plain. A casa tornou-se o refúgio predilecto de Hazlitt, mas a relação com a mulher estava longe de o satisfazer. Em 1812 mudaram-se para York Street, em Westminster, para uma casa onde Milton vivera. Nesse mesmo ano Hazlitt proferiu um ciclo de conferências sobre a ascensão e o progresso da filosofia moderna. Tendo sido um desastre, estas puseram fim à suas aspirações enquanto filósofo, e como os retratos que então pintava não pagavam as contas, viu-se obrigado a aceitar um lugar como repórter parlamentar e crítico de teatro no Morning Chronicle, colaborando também no Champion e no Times, mas a sua ligação mais estreita foi com o Examiner, propriedade de John e Leigh Hunt. Pouco depois, já assinava crítica de poesia, ópera, romances e exposições de arte para uma série de publicações e, no final da década, tornara-se o mais reputado crítico do seu tempo. Naqueles anos, existia um público cultivado, disposto a comprar livros e que queria ler artigos sobre literatura de forma que o fizesse sentir a par dos movimentos e dos principais nomes que se iam impondo. Multiplicavam-se os títulos e estes concorriam entre si, dando espaço a quem quer que fosse capaz de cativar os leitores, com uma prosa enérgica, cruzando referências e aplicada no esforço de tornar a literatura sociável, sendo capaz de animar polémicas e suscitar um ambiente de intriga que desse a sensação de que o drama transbordava dos melhores romances para as páginas de cultura, acicatando os ânimos e, por sua vez, servindo também como inspiração para outras peças literárias. O pedante dava assim lugar ao polemista, o critick ao crítico-recensor, e a cultura tornava-se tema de discussões acesas.
Tudo isto contrasta evidentemente com o ambiente amorfo que se respira hoje nas páginas do jornalismo cultural, não faltando quem reconheça como a própria instância crítica foi sacrificada, dando lugar ao tom rebarbativo do panegírico, voltando a instalar aqueles seres balofos e pedantes que ficam contentes por entediar o leitor fazendo provas da sua erudição esmagadora, que, no entanto, se combina sempre com um talento medíocre, incapaz de revelar algo de crucial entre o ruído e o fulgor do mundo à sua volta. Por essa razão, as subtis modulações desta prosa, cujos períodos amiúde se estendem por várias linhas, poderá causar irritação ao tipo de leitor que acha que gosta de andar pelos jornais como quem cata as priscas dos outros, e se habituou às frases curtas, sem grande densidade, que lhe facilitem a vida, atirando-lhe todas as bengalas, frases feitas, recheando o texto de lugares-comuns, para o fazer sentir sempre em casa, sempre no rés-do-chão do idioma. Mas esses leitores não terão chegado aqui. E a larga maioria deles ficam-se mesmo pelas gordas. Para os outros, os que se alegram diante de uma frase sinuosa, com aquele ouvido sensível para a textura de uma prosa que gosta de experimentar todas as articulações, usar todas as teclas do piano, levando o leitor a sentir que lhe está a beliscar zonas menos acessíveis da sua imaginação. Seguimos Hazlitt nos seus ensaios como alguém que vai com uma vela junto à boca, tendo a sua respiração perfeitamente treinada para nunca a deixar apagar-se, e transmite-a essa chama iluminando diferentes divisões, deixando aquele que se senta a ler nalgum buraco como o inquilino exclusivo de uma mansão imensa, irradiando luz de todas as janelas. Para este escritor, a energia central que anima a oratória bem como a prosa pode provir de todos os lados e até das experiências, noções ou figuras que mais nos repugnam, mas o que importa é não deixar o outro indiferente. Ele cita muitas vezes a expressão de Milton, a “sagrada veemência”, para ilustrar essa energia que, para ele, é vital a toda a escrita e discurso. Não hesitava em recorrer às suas antipatias, aos sentimentos que tantos recusam e censuram, ao ódio, assinalando que, “sem qualquer coisa para odiar, perderíamos o próprio ímpeto do pensamento e da acção”. “A vida tornar-se-ia um charco estagnado se não fosse agitada pelos interesses contraditórios e pelas paixões desregradas dos homens.”
Tendo experimentado na própria pele, e por inúmeras vezes, o tição dos seus adversários, sendo rotulado de “ímpio, jacobino e devasso” e ridicularizado como “o Aristóteles Cockney”, um escritor de classe baixa que queria soar como os seus superiores, Hazlitt nunca se esquivou a uma controvérsia. Em agosto de 1818, a Blackwood’s terá passado das marcas, publicando um ataque tão sujo que Hazlitt decidiu processar o jornal por difamação, acabando por aceitar um acordo extrajudicial. Para os seus críticos, que em muitos casos lhe recusavam o génio, mesmo se, como Thomas Quincey, depois foram obrigados a reconhecer que se aproveitaram dele, plagiando excertos dos seus ensaios, Hazlitt nunca foi outra coisa senão “um tagarela indecente”, que desejava “destruir os próprios alicerces da modéstia e do decoro”.
“Será orgulho? Será inveja? Será a força do contraste? Será fraqueza ou malícia? Mas o certo é que há uma secreta afinidade, uma ânsia pelo mal na mente humana, e que ela tem um perverso, mas afortunado, prazer na ofensa, sendo esta uma fonte permanente de satisfação. O bem puro depressa se torna insípido, requer variedade e espírito. A dor é agridoce, e nunca satisfaz. O amor torna-se, com alguma indulgência, indiferença ou repugnância: só o ódio é imortal. – Não vemos este princípio em acção por toda a parte? Os animais atormentam-se e inquietam-se uns aos outros sem dó nem piedade: as crianças matam moscas por desporto: todos nós lemos acidentes e insultos no jornal como passatempo: toda uma cidade acorre em peso a um incêndio, e o espectador não exulta, de maneira nenhuma, em vê-lo extinguir-se. É melhor que ele se extinga, mas isso diminui o interesse; e os nossos sentimentos tomam parte nas nossas paixões, mais do que no raciocínio. (…) Fizeram-nos algum mal recente? Não: mas nós temos sempre um excedente de bílis no estômago, e queremos um objecto contra o qual possamos usá-lo.”
E agora avançamos para um momento decisivo, que, com a sua luz de vela, não deixará de nos fazer contorcer, seja de riso ou de nervosismo, pela forma como esclarece alguns dos episódios mais recentes, isto numa altura em que para corrigir as desigualdades as guilhotinas deveriam ser arrancadas dos museus, voltando a dar um ar de sua graça ao fazer rolar algumas cabeças no centro das grandes praças de todo o mundo. “O prazer de odiar, como um mineral venenoso, corrói o cerne da religião e transforma-a numa úlcera biliosa e carrancuda; faz do patriotismo uma desculpa para transportar o fogo, a peste e a fome para outras terras: não deixa à virtude mais do que o espírito de censura e uma vigilância estreita, ciosa e inquisitorial sobre as acções e os motivos dos outros. Que têm sido as diferentes seitas, credos, doutrinas religiosas, senão outros tantos pretextos inventados pelos homens para se disputarem e querelarem, e para se fazerem uns aos outros em pedaços como alvos a abater?”
Num outro ensaio, “On the Connection between Toad-Eaters and Tyrants”, uma das mais vigorosas polémicas dos seus Political Essays, Hazlitt afirma: “O homem é um animal com tendência para engolir sapos”, e mostra em seguida como a admiração pelo poder transforma muitos escritores em proxenetas intelectuais, mercenários da imprensa, defensores do restaurado Bourbon Luís XVIII, adoradores de ídolos, amantes de reis.
O género de sicofantas que sempre assumem relevância quando algum líder sem escrúpulos se mostra hábil na hora de excitar a seu favor “o bafo pútrido do fanatismo”, é então que a política abandona toda a frieza e o seu calculismo desgastante, entregando-se a uma embriaguez que permite rachar a opinião pública, dividindo-a em hordas de linchadores, enquanto as elites ficam a rir-se. Repetidas vezes, Hazlitt desferiu golpes contra a “servilidade rastejante” e o “egotismo petulante” que, nos nossos dias, retratam de forma abrangente e classe política. Um dos seus temas persistentes é que a razão é uma “faculdade lenta, inerte, especulativa, imperfeita”, e o seu objectivo é sempre arrancar a imaginação aos reaccionários como Edmund Burke — cujo estilo admirava imensamente — para criar um discurso político que não seja abstracto, académico, neutro, enevoado. A razão abstracta, sem o auxílio da paixão, “não pode competir com o poder e o preconceito, armados com a força e a astúcia”.
Mas se Hazlitt se impõe nos nossos dias como um prodigioso autor moral é pela sua recusa em conformar-se ou resignar-se, tendo mantido em relação a si mesmo e aos seus textos uma insatisfação profunda, sendo que o aguilhão que o fazia prosseguir não era apenas o facto de ter passado sempre grandes dificuldades económicas, pois tinha claro que poderia melhorar a sua situação tão cedo quanto decidisse acolher o suborno da sua consciência, mas porque acreditava que lhe competia também a ele fazer mais e fazer melhor, procurando escrever um texto que fosse a gota de água. Era inimigo da complacência em si próprio, bem como nos outros; foi precisamente por essas razões que rompeu com Coleridge e Wordsworth, quando estes abandonaram o seu primitivo apego à justiça social. “Vi este triunfo celebrado por poetas, meus amigos de juventude e amigos do homem, mas que foram levados pela maré furibunda que, emanando de um trono, derrubou toda a ordem de razão certa que encontrou pelo caminho; e vi todos aqueles que não se juntaram ao aplauso deste insulto e ultraje à humanidade proscritos, perseguidos (eles e os seus amigos alvos de má-língua), de maneira que se tornou coisa consabida que ninguém pode viver do seu próprio talento ou conhecimento se não estiver disposto a prostituir esse talento ou conhecimento para trair a sua espécie e viver da predação ao seu semelhante.”
Poucos escritores terão exemplificado melhor esta forma de miséria moral em que nos fazem chafurdar do que o próprio Hazlitt, sendo que, embora tendo gozado de alguma popularidade, e apesar de ter escrito milhões de palavras ao longo da carreira jornalística, nunca conseguiu viver com desafogo. Foi perseguido por credores, acossado por oficiais de justiça, e chegou mesmo a ser brevemente preso, em fevereiro de 1823. Num desses períodos de penúria, afirma Duncan Wu, Keats terá ido visitá-lo para discutir as suas próprias perspectivas como crítico e jornalista. Encontrou-o sozinho, numa divisão despojada, pois tinha vendido recentemente os móveis e as pinturas para saldar dívidas. Perante aquele cenário, Keats ficou esclarecido, e preferiu manter-se fiel à sua musa, pois se era para ficar na penúria, mais valia fazer as suas súplicas à posteridade redigindo versos. Quanto a Hazlitt, viria a morrer a 18 de setembro de 1830, endividado, depois de passar os últimos meses a sofrer dores excruciantes enquanto o cancro no estômago o consumia. A sua última residência foi um quarto numa modesta pensão da Frith Street. Conta-se que a senhoria escondia o corpo debaixo da cama enquanto o mostrava a eventuais futuros hóspedes. O edifício foi desde então convertido num pequeno hotel, com 30 quartos, mobiliário antigo, banheiras isoladas de pés trabalhados e autoclismos de corrente suspensa. Chama-se Hazlitt’s.
Um amigo que o visitou nos seus últimos dias descreveu assim o estado em que o encontrou: “Jazia, macilento, mirrado e indefeso, no leito de onde nunca mais se ergueria. A sua mente parecia ter atravessado todos os perigos da doença extrema, permanecendo incólume e tão firme como sempre. Não podia erguer a mão do ponto onde repousava sobre a colcha, e a sua voz transformara-se, reduzida a um sussurro roufenho, semelhante ao grito débil que já ouvi a certas aves. Nunca me foi tão sensível o poder da morte.”
Tal como Wilde no quarto da pensão onde expirou o seu último fôlego, Hazlitt viu-se obrigado a redigir pelo menos dois ensaios naquele verão tormentoso. Um deles intitula-se The Sick Chamber, e nele entrevemos os frascos de remédios, as tisanas, naquela “masmorra insalubre” onde sentia a vida escoar-se. Neste ensaio, podemos visitá-lo nesses períodos de tão dolorosa e não menos lúcida agonia, a suportar um calor sufocante, apertando a almofada para suportar a dor quando esta se tornava lancinante, e a andar de um lado para o outro com passos apressados ou exangues, para depois regressar à vida “com os nervos e os músculos a zumbirem”.
De algum modo Hazlitt é o candidato perfeito a ser restituído como uma assombração exemplar. Alguém que morreu tal como viveu, alguém que não nos deixou uma grande obra propriamente, mas um espírito, esse resíduo fenomenal que serve para formular uma voz incitante e que mantém um diálogo connosco nalguns dos momentos em que somos forçados a assumir escolhas que definem para sempre o nosso carácter. Para Hazlitt a escrita e a vida eram uma e a mesma coisa, e, talvez por isso, nunca sacrificou esta para produzir uma obra imortal. Mas de algum modo o seu espírito mantém-se vivo nas coisas que escreveu, e, longe de traçar um perfil virtuoso, é um espírito tão inquieto e contraditório como cativante. O caos deliberado da sua vida pessoal entrevê-se nos súbitos lampejos autobiográficos que percorrem os seus ensaios. Sempre à míngua, sempre enrascado, solitário, procurando prostitutas para raspar da pele o seu grande anseio de viver um grande amor, confessando, no entanto, que se vira incapaz de amar verdadeiramente uma mulher, caminha na orla do abismo na sua escrita. Fascinava-o a criminalidade, de tal modo que por vezes se entrevê a figura que fala com a voz do homem subterrâneo. E em parte esse é o motivo que nos leva a apostar nele como essa espécie de cadáver romântico que, sem abdicar da tarefa de fazer deste um mundo melhor para os vivos, levou a enterrar consigo tantas dessas persistentes ilusões que nos tornam seres receosos de nos sacrificarmos por causas ou sequer prazeres verdadeiramente exemplares, capazes de produzir verdadeiro choque na constituição dos outros homens. A tantos dos poetas contemporâneos, notando como só “uma vida de acção e perigo modera o receio da morte”. “Não só nos dá valentia para suportarmos a dor, como nos ensina a cada passo a precária possessão que temos do nosso ser presente. Os homens sedentários e estudiosos são os mais apreensivos nesta matéria. (…) Se desejamos tão-só continuar em cena para alimentar os nossos caprichosos humores e as paixões que nos atormentam, mas vale desaparecermos de vez”. Lembra-nos ainda que “o apego efeminado pela vida como tal, como uma ideia geral e abstracta, é efeito de um estado da sociedade altamente civilizada e artificial”. Mas se “dantes os homens mergulhavam nas vicissitudes e nos perigos da guerra, ou apostavam tudo o que tinham num só dado, outros numa paixão que, se não pudesse ser gratificada, tornava para eles a vida um fardo”, Hazlitt reconhecia como uma qualidade decisiva esse espírito de martírio, bem como um laivo de energia temerária e barbaresca, sendo que nas existências fortes há sempre um ousado desafio à morte. “Não tinha a religião algo a ver com isto?: a crença implícita numa vida futura, que tornava esta menos valiosa e dava forma a algo mais além na imaginação; de modo que o rude soldado, o amante embeiçado, o valoroso cavaleiro, etc., podiam dar-se ao luxo de desperdiçar a presente fortuna, e dar um salto para os braços da futuridade, da qual se esconde o céptico moderno, com toda a sua razão enfatuada e vã filosofia”… Assim, Hazlitt instiga em nós esse ânimo revoltoso, esse desdém face a essas formas de viscosidade verbal edulcoradas e traficadas como poesia, procurando consolar-nos “na nossa mole, lânguida e vagarosa afeição pela vida, mesquinha como é”. Mas em vez de uma postura desencantada e fatalista, em vez dessa ladainha rançosa que se faz passar por arte, ele deixa claro porque a saída de tudo isto, a revitalização das formas e até do todo social, deve começar por uma desabusada atitude crítica.