O Matuto é feliz. Não no sentido de ter “reminiscências do ventre materno” e outras baboseiras. Feliz, no sentido de estar em paz. Tranquilo. De bem com a vida. De coração leve. Alma lavada. Está nas nuvens e anda nas suas sete quintas. Mesmo com a barriguinha proeminente, a barba branca e alguns quilos a mais, o Matuto continua feliz. A saúde do Matuto, porém, anda a pregar-lhe partidas: é a gota; os dentes com buracos de golfe; o joelho ofendido; as costas com bicos de papagaio, de pardal e outras aves; os olhos murchos; as renites, as sinusites, as tendinites e outras maleitas acabadas em “ites”; as artroses; as unhas quebradiças; os cabelos nos buracos das orelhas; e nas narinas; a rigidez matinal – até desenferrujar demora 3 minutos e meio; as hérnias; as lombalgias; as dores nos joanetes, nos claudetes, nos pauletes e nos filipetes; as cãibras; as varizes; os esquecimentos ocasionais (nada de grave… onde é que eu ia mesmo!!!); dormir aos pinguinhos; azia; alterações intestinais; gases; dar passinhos de pardal; a pele a escamar que nem uma lagartixa – o Óscar, a lagartixa residente da “Casa das Pontes” entende disto; ficar a arfar só de subir 3 degraus; ter frio até no verão… Ufff! Que cansaço. Uma maçada!
Todavia, o Matuto é feliz. Há que reconhecer que nos dias de hoje a felicidade do homem mede-se doutra forma. O homem perfeitamente feliz tem uma saúde de ferro, vai ao médico por cá aquela palha, e faz check-ups religiosamente a cada três meses. Os males de saúde, do homem perfeitamente feliz, limitam-se a duas áreas: ligeira dor de cabeça (mas não toma comprimidos porque ataca o coração); e ligeira azia (mas não toma pastilhas Rennie porque ataca o estômago). O homem perfeitamente feliz faz alongamentos matinais e frequenta o ginásio (academia, no Brasil, por favor) do bairro. O homem perfeitamente feliz exibe uma barba perfeitamente aparada, desenhada a regra e esquadro pelos arquitectos Siza Veira e Niemeyer – parceria Luso-Brasileira – e nunca terá um cabelo branco. Até os cabelos do nariz têm desenho geométrico. As unhas têm certificação de manicure internacional. O bronzeado é uniforme. Exibe uma barriga chapada e lisa (nunca terá o desentendimento anatómico do Matuto, em que o seu umbigo chega a todo o lado antes da ponta do seu nariz).
O homem perfeitamente feliz sente-se ameaçado a norte pela mínima queda de cabelo (embora rape o cabelo das pernas), e a sul pelas unhas encravadas dos pés. Usa uma corrente de ouro ao pescoço, um anel volumoso, e bebe água mineral gaseificada, a 12,5º Celsius em taças, nunca em copos. Só come alimentos orgânicos e faz yoga enquanto o café importado da Colômbia filtra na máquina Nespresso. O homem perfeitamente feliz não fuma. Ou melhor, deixou de fumar há 8 anos, 4 meses, 23 dias e 9 horas. E, se não deixou, vai deixar a qualquer momento, porque o homem perfeitamente feliz tem uma vontade férrea que lhe obedece perfeitamente. O homem perfeitamente feliz não confessa nenhuma religião, mas diz sempre: “eu não julgo ninguém”, num tom de quem está mortinho para dizer de sua justiça. Na política, o pensamento do homem perfeitamente feliz, cabe em 140 caracteres perfeitamente ponderados. É correctíssimo! O homem perfeitamente feliz acha que o império Português começou a descarrilar quando o Dom Pedro soltou aqueles urros no meio do mato; acha-se insubstituível no emprego, mas está sempre no Linkin a procurar melhores oportunidades; tem como máximo esforço mental o jogo de futebol que vê vociferando impropérios à mãe do árbitro e ao VAR, envergando a camiseta do seu clube.
O homem perfeitamente feliz não frequenta psicólogos, e tira selfies com o seu Smartphone usando iluminações de estúdio e filtros certificados. Apesar de não consultar psicólogos, consulta periodicamente o dentista. Os seus dentes são alvos como a neve, direitos que nem um fuso e são recauchutados para parecerem ainda mais brancos. A sua cama é feita com a precisão dum origami, e quando ele acorda o travesseiro nem está amassado. Não tem ramelas, nem olheiras, nem mau hálito. O homem perfeitamente feliz, é óbvio que não usa desodorizante. Usa perfume importado. Aderiu à moda das bikes e nunca anda de bicicleta. O carro do homem perfeitamente feliz está sempre lavado e nunca uma caganita de pomba se atreveu a pousar ali. O pezinho transporta sempre uma meinha branca imaculada. Vai ao “shoppingue”, de shorts e camisa rosa da Tommy Hilfiger. O homem perfeitamente feliz está sempre de sorriso armado, para mostrar os dentes branquelas. E projecta os lábios para a frente, para ostentar o Botox. Trata a esposa com benevolente ternura, pondo um braço tatuado nos seus ombros, e levanta os filhos acima da cabeça para que todos vejam os bíceps em batata. O seu “pet” faz meditação e dá cursos de Mindfulness. Cita pensadores obscuros do Tik-tok. A sua grande glória social é dizer aos desafortunados: “eu bem te avisei”.
O mal do homem perfeitamente feliz é ter uma esposa ainda mais perfeitamente feliz. E, além disso achar-se tão perfeitamente feliz que pensa ser a última bolacha do pacote. Em suma, o homem perfeitamente feliz, é irritante, enervante e azucrinante. É insuportável! Perfeitamente idiota.
Mas enfim! Enquanto o homem perfeitamente feliz está preocupado com dentes brilhantes e fios de cabelo, o Matuto, de alma lavada, apenas pensa em não tropeçar nas próprias varizes. As coisas são como são!