Na sua biografia de Ryszard Kapuscinski, possivelmente o repórter mais célebre da segunda metade do século XX, Artur Domoslawski aponta imprecisões, exageros e efabulações a que o seu biografado recorria para tornar os textos mais aliciantes. Domoslawski evita usar a palavra mentira – prefere colocar a questão de uma forma mais elegante, rotulando os seus livros de ‘literatura’.
Seja como for, essa sombra da dúvida pode tornar a leitura das obras de Kapuscinski um exercício um tanto ingrato, em que oscilamos entre deixarmo-nos levar pela história e hesitarmos a cada passo, receosos de cair numa armadilha.
Ele gostava de contar, por exemplo, que o pai tinha conseguido escapar ao massacre da floresta de Katyn, em 1940, em que os soviéticos eliminaram metódica e implacavelmente a elite do exército polaco – cerca de 20 mil oficiais. Segundo Domoslawski, trata-se de mais uma história inventada.
Essa questão de crer ou não crer colocou-se-me recentemente enquanto lia O Império (ed. Campo das Letras), o livro em que Kapuscinski relata as suas andanças pela antiga União Soviética feitas ao longo de mais de meio século (1939-1993), «num total de sessenta mil quilómetros». Tinha-o há muito guardado, como uma garrafa de vinho que se abre numa ocasião especial, e sabia que me reservava momentos de grande prazer. Na dúvida, preferi adotar uma atitude de saudável ‘suspensão da descrença’, para que esse prazer não fosse beliscado.
O primeiro encontro de Kapuscinski com a União Soviética – ou o Império, como lhe chama – ocorre em 1939, quando ele tem apenas sete anos. Na sua Pinsk natal (atual Bielorrússia) assiste aos soldados do Exército Vermelho a derrubarem as altas torres da igreja a tiros de canhão. «Ajoelhadas, as mulheres rezavam o terço. A praça deserta era percorrida por um artilheiro embriagado que gritava: Vistes? Disparámos contra o vosso Deus! E ele? Nada. Nem piou! Será que tem medo? É isso? Ria-se e, logo de seguida, tinha um ataque de soluços.»
Muitos anos mais tarde, em 1967, já como correspondente da Polska Agencja Prasowa, o equivalente polaco da nossa Lusa, Kapuscinski fez um périplo pelo sul do ‘Império’. Do Azerbaijão, conta-nos esta coisa extraordinária: «Aqui, os nomes das raparigas estão sempre carregados de significado. […] Gulnara significa flor; Narguis, narciso; Bahar, primavera […] Depois da revolução, as pessoas começaram a pôr às meninas nomes de coisas modernas que chegavam ao campo. Daí que haja muitas raparigas que dão pelo nome de Tractor, Laranjada, Motorista… Um pai, contando seguramente com a baixa de impostos, pôs à sua filha o nome de Finotdiel, que não é mais do que a abreviatura de Repartição de Finanças (Finansory Otdiel).»
Um dos recursos mais usados por Kapusnsinki é sem dúvida o exagero puro e simples, com contornos cómicos. Sobre a zona velha de Bacu, capital do Azerbaijão, conta-nos que é tão apertada que antes de lá entrar ele tem de aspirar profundamente para que não lhe falte o ar. «Se uma pessoa se põe no meio da rua com os braços abertos, pode acariciar com uma mão o bebé que dorme na casa da esquerda e com a outra pegar na pera que nos ofereceram na mesa da casa em frente. As pessoas aqui caminham em fila indiana, pois um só casal já dá a sensação de multidão».
Haveria mesmo um artilheiro embrigado que se ria enquanto as torres da igreja de Pinsk eram atingidas? Haveria mesmo meninas chamadas Tractor e Laranjada? Seriam as ruas de Bacu tão estreitas que bastava abrir os braços para colher objetos de dentro das casas?
Antes de respondermos a essa pergunta, sugiro que nos detenhamos um momento numa das epígrafes que o repórter escolheu para o seu livro. Reza assim: «Alguma coisa se esclareceu mas ainda há algo que permanece obscuro».
Muito possivelmente o artilheiro embriagado, as raparigas chamadas Tractor e Laranjada e a estreiteza sufocante das ruas da velha Bacu são exageros ou criações do autor. Mas é de admitir a hipótese de o império soviético ser algo tão vasto, tão peculiar e tão misterioso, que só com umas pinceladas de imaginação poderemos alguma vez captar a sua estranheza e aproximar-nos um pouco mais da verdade.