O Matuto caminha a passos largos para os seus anos crepusculares. Mas, nem por isso o gato vai às filhoses, porque, se por um lado o Matuto viu a sua vida sacudida pela vaidade fabulosa das tecnologias, por outro lado ele faz parte dum tempo em que ainda se escrevia à mão. O Matuto tem uma memória viva dos esboços de caligrafia, sob a batuta do Sr. João – ilustre pai do Matuto – que conferiam uma certa exclusividade à escrita. O torneado da perna principal do “F” maiúsculo, a requebra do pulso para iniciar a argola de volta da letra “g”… tudo tinha um sabor de pequena glória familiar. A chuva miudinha das manhãs Inglesas, observava atenta a luta do Matutinho, na arte da escrita manuscrita. Ainda hoje, o amanuense das aventuras do Matuto, usa uma caneta Parker e cadernos da Emílio Braga para registar a sua letra desenhada. Verter tudo para o computador, para chegar ao cuidado delicado da Carolina no Nascer do SOL, é sempre uma odisseia no espaço virtual.
O Matuto lembra do tempo em que escrevia com tinta permanente (os Ingleses dizem “fountain pen” que é bem mais lúdico). A caneta tinha um bico que mergulhava no tinteiro. Havia um buraquinho na carteira escolar onde se encravava o bojão de tinta. “Três Moscas” era a tinta mais carismática dos anos 60 e 70 e foi responsável por difundir grande parte do movimento surrealista Português. O Matuto sabe de fonte segura que os últimos versos do poeta Al Berto – o que vejo já não se pode cantar / caminho com os braços levantados e com a ponta dos dedos escrevo o firmamento da alma / espero que o vento passe / escuro, lento, então entrarei nele, cintilante, leve / e desapareço – foram escritos com tinta “Três Moscas”. A frugalidade no rótulo diz tudo. Não há detalhes: serão moscas varejeiras (tão Portuguesas)!?; serão moscardo (que incomodam o gado no prado)!?; serão moscas Tsé-tsé (daquelas que dão sono)!? Ignora-se! Apenas, e singelamente, “Três Moscas”. O Matuto fez uma pesquisa e lê que esta tinta originalmente fabricada pela casa Mendes Pereira, e Filhos, Lda. iniciou a produção num palacete situado no Campo Grande, em Lisboa, onde a família produzia tintas e outros artigos para escritório como colas e lacres. Nada se sabe sobre a influência para o uso dos logótipos ANCORA e CISNE, onde nas tintas caligráficas ou estilográficas, o nome CISNE se veio a tornar a imagem de marca da empresa. Também havia as “BORBOLETA” e “ZÉ POVINHO”, com um grafismo muito peculiar. Na verdade, a “Cisne” e a “Pelikan” já eram marcas mais avançadas porque partiam dum caldo primordial “musquídeo” para bichos mais evoluídos. As vantagens na escrita deveriam ser notórias – aventa o Matuto.
Ao usar a caneta de tinta era essencial um guarda costas de peso: o mata-borrão – adverte o Matuto. A tinta por vezes demorava a secar e um descuido produzia manchas irritantes no papel. Aí entrava em acção o mata-borrão – objecto em forma de canoa, com uma base oval que se mexia como um balanço. Esta base era forrada a papel grosso que sugava a tinta. Mas o mata-borrão era desajeitado e ocupava espaço na pasta (o antepassado da mochila) e por isso deu lugar a folhas simples de massa de celulose que absorviam os excedentes líquidos. No computador o Matuto não acha uma tecla equivalente ao ‘mata-borrão’. Não há botão ‘delete’, ‘esc’, ‘backspace’ que execute a tarefa do chupão mata-borrão. Uma pena – lamenta o Matuto. Ao arrepio da memória o Matuto recorda que, entretanto, as canetas de tinta passaram a ter na barriga um cartuchinho com o líquido caligráfico lá dentro. Portento da técnica: uma caneta grávida.
Hoje, quando vê os pirralhos a rabiscar no ecrã táctil, o Matuto suspira. Ver criaturas, alfabetizadas pela ditadura do corretor ortográfico, onde “alma” vira “alface”, é constrangedor. Isto não é saudade, é refluxo. E pergunta o Matuto: que ficará das palavras, sem o risco da tinta e o pudor da mancha? Haverá poesia nos polegares? Talvez. Mas o Matuto, segue fiel à sua velha Parker e ao mata-borrão — não por nostalgia, mas por teimosia. E, no fundo, quem nunca teve uma caneta a vazar tinta no bolso das calças… não teve infância. Daí o Matuto continuar a escrever com tinta verdadeira. Não por ser romântico, mas porque prefere borrar a escrita do que ser apagado pela história. Afinal, um velho nunca se surpreende com o famigerado progresso, e ao escrever as suas memórias em linhas manuscritas, porventura será impossível decifrá-las – o que é sempre uma boa medida de precaução.