A União Soviética a voo de pássaro

Entregaram-lhe um uniforme bem engomado e o passaporte de um morto com uma fotografia esborratada

Esta semana continuamos a acompanhar o repórter polaco Ryszard Kapuscinki nas suas andanças pela imensidão do império soviético, um império tão vasto que só podia ser conhecido ‘A voo de pássaro’ (título do capítulo central do livro O Império, editado em 2005 pela Campo das Letras).

Uma simples viagem a bordo de um dos Tupolevs ou Antonovs de fabrico russo em finais dos anos 80, princípio dos 90, podia ser uma aventura. «Pela primeira vez na vida aconteceu-me voar num avião tão abarrotado de gente como um autocarro urbano à hora de ponta», queixa-se o nosso repórter. Mas não eram apenas os aviões cheios como um ovo, eram também as esperas intermináveis e a falta de informação. Como as pessoas tinham medo de fazer perguntas – uma prerrogativa reservada às autoridades – permaneciam obedientemente na ignorância…

Se em Bacu, no Azerbaijão, Kapuscinski encontrou a bordo uma algazarra de todo o tamanho, quando voou de noite para Vorkuta, no círculo polar ártico, assistindo à aurora boreal, teve o que descreve como «uma experiência artística, pictórica». Vale a pena transcrevê-lo extensivamente: «Ao ganhar a altura de vários milhares de metros, o avião entra de repente nos bastidores duma espécie de imenso teatro cósmico. Não se vê o cenário que submerge na escuridão da terra, longe, muito longe. Só se vêem cortinados de luz estendidos no céu. São umas cortinas que se estendem ao longo de centenas de quilómetros, leves e de cores pastel entre as quais predominam os tons amarelo e verde. Irradiam uma luz cintilante que não cessa de luzir. O avião, que parece ter-se perdido nesta decoração luminosa e fulgurante, começa a dar voltas e mais voltas entre as cores e as pregas da matéria celeste, como se se confundisse na rota e perdesse o sentido de orientação. Verde! Que verde tão extraordinário! ‘O verde e o azul reforçam a sua cor na penumbra’, é uma citação de Leonardo da Vinci, do seu Tratado sobre a Pintura. De facto, sobre o fundo de um céu tremendamente negro, o verde perdia a sua natural tranquilidade e equilíbrio, e adquiria uns tons tão intensos, tão dominantes, que as outras cores esmoreciam, ficavam num segundo plano. Sobrevoávamos já o aeroporto quando o grandioso teatro da aurora boreal se apagou de repente, desaparecendo na escuridão. Temperatura: 35 graus abaixo de zero. Em seguida senti a chicotada do frio que me açoitava o rosto, me tirava a coragem e me fazia tremer».

Em cerca de 100 mil quilómetros que terá percorrido em aviões soviéticos, houve lugar para outras peripécias deliciosas, uma das quais só pôde revelar alguns anos depois da sua ocorrência. Para quem já esteve em todo o lado, de Lagos à Cidade do México, do Camboja à Guatemala, um local é tanto mais apetecível quanto maior a dificuldade para lá chegar.

Kapuscinski queria por tudo ir a Nagorno-Carabaque, onde havia um movimento de insurreição. Mas faltavam-lhe documentos que nunca poderia obter. Como contornar esse obstáculo? Com a cumplicidade da tripulação do único voo para aquele destino. Entregaram-lhe um uniforme bem engomado e o passaporte de um morto com uma fotografia esborratada: ia viajar como comandante do avião! A primeira dificuldade surgiu ainda no aeroporto. «Comecei a andar mas em seguida vi-me numa situação inesperada, pois mal cheguei ao átrio do aeroporto, as pessoas, ao verem um piloto caíram em cima de mim a fazer mil perguntas: para onde íamos, quando e se as levaríamos». Ovoo, num pequeno avião com capacidade para 26 passageiros, correu tranquilo. O mais difícil ainda estava para vir. «Logo que desliga os motores, os fuzileiros armados cercam o avião e aproximam-se de nós uns oficiais». É um momento tenso, emocionante. Kapuscinski desce decidido as escadas do pequeno avião em direção aos fuzileiros. Conseguirá fazer-se passar por piloto da Aeroflot? Não quero ser desmancha-prazeres, mas sabemos que sobreviveu para contar a história.