O Matuto é antes do mais um olho que lê. Lateralmente é um ouvido que escuta. E, de raspão, um dedo que escreve. Vem este arrazoado à laia de introdução, a propósito de coisas que o Matuto leu, escutou e tentou verter para esta crónica.
Assim, de repente, não mais que de repente, o Matuto ouviu a expressão “conversa de abobrinha”. O palco era uma aula de Inglês. O assunto, a tentativa de traduzir “chitchat”, ou a equivalente “small talk”. (os puristas do Inglês de Sua Majestade talvez se recordem do Jeffrey Bernard e das suas “pleasantries”, e “beauty-parlour babble”) E, vai daí, um aluno sugere: “conversa de abobrinha”. O Matuto estacou. Gostou da sonoridade das palavras. Gostou da imagem mental que elas despertaram. Portanto, “small talk”, pode ser uma “conversa casual”, uma “conversa fiada”, uma “troca de ideias”, uma “conversinha”, um “bate papo”, um “papo furado”, um “jogar conversa fora” … ou até uma “tagarelice”. Muito bem. Adiante! Foi nesse momento que o Matuto levantou a cabeça. Como assim!? É isso: foi aí que o Matuto “levantou a cabeça”.
Expliquemos! Afonso Cruz diz numa das suas crónicas no finado “Jornal de Letras” que Roland Barthes, no livro “Le Bruissement de la Langue”, (bruissement = farfalhar) chamava a estas ‘interrupções’ na nossa vida de “levantar a cabeça”. É aquele momento que nos permite pensar o sucedido, interpretar e refletir sobre o que aconteceu. Cada vez que “levantamos a cabeça”, foi porque o texto que lemos, a música que escutámos, a expressão que ouvimos, nos empurrou para fora do texto, para fora da música, para fora da expressão. E, nos fez emergir. Vir à tona. Quantas mais benditas ‘interrupções’, melhor o livro, a música, a conversa… Ao levantarmos a cabeça colocamo-nos na esfera do sublime – considera o Matuto. Se for um livro é o momento em que sublinhamos, dobramos o canto da página, ou anotamos na margem. Se for uma música, colocamo-la logo na lista dos favoritos. Se for uma palavra, uma frase, imediatamente empunhamos a Parker, e escrevemo-la no caderninho quadriculado da Emílio Braga.
Foi isso mesmo que aconteceu com o Matuto quando ouviu “conversa de abobrinha”, como tradução possível para “small talk”. No entanto, se esta descoberta era duma graciosa trivialidade, a riqueza e a poesia dos hábitos São-tomenses mostraram-se muito mais profundas. O Matuto leu sobre o linguajar do povo de São Tomé. É curioso como a beleza se pode esconder nas coisas mais singelas. No crioulo de São Tomé quando não se vê alguém por algum tempo, diz-se que “não se sente aquela pessoa”. “Não sinto a tua mãe há algum tempo, ela está bem?” E quando a pessoa emagrece afirma-se que ela “baixou o corpo”. Num outro exemplo combina-se beleza e paladar. Sabor é coisa boa. Assim, a sabedoria popular dita: “sabe bem olhar para aquela rapariga”. Que é como quem diz que ela é bonita. Também por aquelas bandas áfrico-tropicais a saudação matinal para “bom dia”, é “amanheceste bem?” Que delícia – pensa o Matuto.
O Matuto considera que a vida das coisas, tende a ficar um pouco vazia quando tudo se repete de forma mecânica. É como se os verbos e adjectivos ditos muitas vezes, virassem baba. Ao olharmos para dentro de livros, músicas e palavras, descobrimos encantos não imaginados. Somos interrompidos. Levantamos a cabeça. Franz Kafka dizia: “ler é como ter um machado que quebra o gelo dentro de nós”. A ideia de Kafka é que certas leituras magoam, dilaceram e transformam. Da mesma forma, há episódios que nos desatinam. Aí, meio zonzos, levantamos a cabeça, para sugar o belo – matuta o Matuto.
Entretanto, as abobrinhas continuam a dominar a paisagem. O Matuto apenas sorri, resignado.