O Governo e o Chega, na Saúde 

Uma lei de bases é um álibi, se não se quiser ou não se puder resolver os problemas onde eles surgem. A aprovação de tal lei só pode ser conseguida pelo Governo com o apoio do Chega

Agora que os media já se convenceram de que a ministra da Saúde não se demite nem é demitida, talvez se possa olhar a realidade e o futuro. No turbilhão recente, o Governo de Luís Montenegro não teve capacidade para propostas estruturantes: não pôde decidir o destino da direção executiva nem da restante orgânica central; extinguiu as administrações regionais de saúde (ARS), mas nada de concreto propôs ao nível regional; sonhou que as unidades locais de saúde (ULS) poderiam ser uma forma de integrar cuidados primários e hospitais, mas ocorreu o natural predomínio hospitalar; teve que aceitar um orçamento amputado, sem meios para executar o corte; tentou disciplinar o recurso a tarefeiros e quase gerou um levantamento; anunciou unidades de saúde familiar, modelo C (USF-C) que não despertaram candidaturas e abriu o caminho à clínica privada convencionada recolhendo indiferença. Ainda bem, pois estas duas medidas, destruiriam o que ainda está de boa saúde nos cuidados primários.

Agora propõe-se aprovar uma nova lei de bases da saúde. Fugir do nível terrestre para o estrato-esférico é uma tentação natural. Já ocorrera em 2001 e mais tarde em 2019. Uma lei de bases é um álibi, se não se quiser ou não se puder resolver os problemas onde eles surgem. 

A aprovação de tal lei só pode ser conseguida pelo Governo com o apoio do Chega. Ora a proposta ‘Saúde com Confiança’ do Chega em nada coincide com as conhecidas intenções privatísticas do Governo. Vejamos: construção dos hospitais do Seixal, do Lisboa Oriental (em curso), do Oeste e do Algarve (em marcha); reforço do papel do enfermeiro especialista em saúde materna e obstetrícia (quem os cá dera, nos partos de baixo risco); bom funcionamento de viaturas de emergência médica em todo o País; criar a carreira de técnico auxiliar de saúde; otimizar o serviço prestado pelos médicos de família no SNS; defesa da medicina geral e familiar e do acesso universal a tais serviços; um programa de prevenção e combate à obesidade; finalmente, o aumento da eficácia, eficiência e produtividade do SNS, particularmente nas zonas mais carenciadas. 

Bem sabemos que nos programas dos partidos, uma coisa são as medidas do programa e outra a prática da governação. Mas quem pretenda criar unidades de saúde familiar privadas, instaurar a medicina convencionada na saúde familiar sabe bem que irá sugar médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos e nutricionistas aos já esvaídos quadros do SNS. Como para o Chega a solidariedade se subordina sempre ao individualismo, os papeis estão trocados. Estranho paradoxo este, de o Governo estar a ser ultrapassado à esquerda pelo partido à sua direita, que condenara em dupla negativa.

Teremos mais uns meses de confusão. Se o Governo pretende melhorar a Saúde aqui ficam apontamentos: na orgânica, unificar a administração central do sistema de saúde (ACSS) com a direção executiva; tal como anunciou Fernando Alexandre para a Educação, criar uma vice-presidência para a saúde em cada comissão de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR), equipa pequena para a coordenação regional e relais do centro para as ULS; nelas, reforçar a componente dos cuidados primários. No terreno, executar o prometido mais forte papel da enfermagem na saúde materna e nos partos de baixo risco; completar a malha de USF-B; para reter pessoal, criar centros de responsabilidade integrados (CRI) em todos os hospitais e nas disciplinas de maior atração pelo privado; completar a rede dos cuidados continuados e celebrar protocolos entre centros de saúde e entidades residenciais para pessoas idosas (ERPI); criar unidades públicas de medicina física e reabilitação em todas as cidades e nas metrópoles; criar o cheque-podologista a gerir pelos médicos de família, em articulação com o programa de controlo da diabetes da DGS; ao lado de cada centro de saúde, com recursos municipais e de freguesias, criar atraentes centros de doentes frequentes para apoio aos doentes crónicos e outros, na sua errância entre centros de saúde, hospitais e meios de diagnóstico.