Reconstruir a confiança

Enquanto o Estado transferir o ónus social para os senhorios, não há políticas coercivas ou incentivos fiscais que resolvam o problema.

Enquanto o Estado transferir o ónus social para os senhorios, não há políticas coercivas ou incentivos fiscais que resolvam o problema.

Em entrevista ao Público, Marques Mendes explicou limpidamente por que razão existem milhares de casas devolutas em condições de serem arrendadas. O que leva, afinal, um proprietário a abdicar de receita? «Porque nos últimos anos se minou a confiança. E como se pode restabelecer a confiança? Um entendimento (…) entre quem governa e quem aspira a ser governo, dizendo que durante dez anos as regras em matéria de arrendamento são estas. Com aquela medida completamente imbecil, no passado, que foi o arrendamento coercivo, matou-se a confiança. A medida não teve nenhum efeito, mas teve o efeito, no plano político, de matar a confiança, as pessoas ficaram aflitas».

Marques Mendes colocou o dedo na ferida: a desconfiança que se instalou nos proprietários. Há tempos, tive conhecimento de um caso que ilustra bem este problema. Fui abordado por uma jovem que me contou a sua história. Filha de emigrantes e licenciada em engenharia, tinha a ambição de voltar para o Porto, e concorreu com sucesso a um posto de trabalho numa das empresas tecnológicas que se instalaram recentemente na cidade. A sua avó era proprietária de uma casa no centro do Porto, e aspirava mudar-se para um lar. E a Joana – o nome é fictício – ficou com a sua casa, que restaurou. Em troca, ajudava a avó pagando a mensalidade do lar.

Algum tempo depois, não necessitando de uma casa tão grande e querendo reduzir gastos, optou por adquirir um pequeno apartamento num município vizinho, dando como hipoteca a casa que herdara e que colocou no mercado de arrendamento. Não faltaram interessados e conseguiu arrendar a casa por um valor que mais do que cobria a prestação ao banco. Só que, logo ao fim de poucos meses, o inquilino deixou de pagar a renda e de atender os seus telefonemas.

Intentou uma ação de despejo que, milagrosamente, durou menos de três anos. Mas, quando conseguiu recuperar a casa, deparou-se com um cenário de total destruição e vandalismo. Não conseguiu reaver as rendas devidas ou os gastos judiciais, pelo que se viu obrigada a vender a casa no estado em que a encontrou.

Contou-me que durante o processo, para além da aflição, sentiu que para o sistema, para parte da vizinhança e até para o tribunal era ela a malvada – a senhoria insensível aos problemas da família que acabou por ser despejada.

De facto, enquanto o ónus social estiver no proprietário e houver um garantismo que apenas defende o inquilino, o mercado de arrendamento é imperfeito. O preço elevado das rendas reflete esse risco imponderável e a pouca oferta. Não admira, por isso, que haja milhares de Joanas que preferem ter casas devolutas ou optam pelo alojamento local.

Marques Mendes tem, pois, razão: é preciso um pacto de regime que equilibre os direitos e as obrigações entre senhorios e inquilinos, restituindo a confiança que décadas de políticas esquerdistas e discursos demagógicos destruíram. Enquanto o Estado transferir o ónus social para os senhorios, não há políticas coercivas ou incentivos fiscais que resolvam o problema. Tanto mais que esse mesmo Estado tem uma Autoridade Tributária que age sem contemplações quando se trata de cobrar dívidas, mas não reconhece que um credor privado possui, também ele, o direito à salvaguarda do que lhe é devido.

Com a ‘geringonça’, as políticas públicas de habitação foram, durante anos, ditadas por radicais de esquerda. A passagem de Marina Gonçalves pelo Ministério da Habitação foi um desastre. Agora, não se pode perder tempo: precisamos de legislação e de consenso.