Deve haver poucas coisas mais desafiantes à tranquilidade humana que ouvir um evangelho moralista da boca de alguém que muito dificilmente pode ser considerado um evangelista. E o discurso de João Lourenço na cerimónia do quinquagésimo aniversário da independência de Angola prefigura uma dessas estranhas e incómodas situações.
«Mal tínhamos acabado de vencer o colonialismo português que nos oprimiu e escravizou durante séculos», disse o presidente angolano, «tivemos de imediato de enfrentar o regime retrógrado do Apartheid, que representava uma ameaça permanente aos povos da África Austral e de Angola em particular». Por isto, continuou, «[c]orremos o sério risco de ser colonizados duas vezes num tão curto espaço de tempo». Não negando o colonialismo português nem a crueldade do apartheid sul-africano – são factos históricos –, quem ouve o discurso de João Lourenço sem entender o contexto do país desde a independência poderá pensar que está perante uma versão angolana de Nelson Mandela. Mas, e para benefício dos mais distraídos, olhemos para alguns dados.
O PIB per capita angolano registado no ano de 2024 foi de 2.100 dólares, de acordo com dados do Banco Mundial. A média mundial situou-se nos 13.700 dólares no mesmo ano. A inflação rondou os 20%. Isto enquanto Angola se encontra no top 30 dos países com maiores reservas de petróleo. Ora, estes dados só podem apontar para uma conclusão: incompetência política e corrupção. Conclusão esta que também, claro, encontra respaldo nos dados: de acordo com a Transparency International, Angola apenas consegue 32 pontos de 100 possíveis, conquistando assim o 121.º lugar num universo de 180 países.
Mas há outro indicador, o mais importante, que merece atenção. O diagnóstico sobre o estado de saúde da liberdade em Angola, conduzido pela Freedom House, é ainda mais preocupante que o da TI em relação à corrupção: 28 pontos em 100 possíveis que culminam no rótulo “Not Free”. No relatório sobre o país, a organização escreve que «Angola é governada pelo mesmo partido desde a independência, e as autoridades têm reprimido sistematicamente a dissidência política. A corrupção, as violações do devido processo legal e os abusos por parte de forças de segurança continuam a ser comuns». «Algumas restrições à imprensa e à sociedade civil foram atenuadas após a tomada de posse de João Lourenço em 2017», concede, «mas essa abertura parcial foi praticamente revertida». É um relatório que, mutatis mutandis, poderia bem ter sido redigido sobre o Estado Novo.
Mas nem estas estatísticas como pano de fundo, nem a presença do Presidente da República português impediram João Lourenço de repetir o velho ralhete anti-colonial. Felizmente, depois de se libertar do jugo colonial de Lisboa, o povo angolano escapou ao fado segregacionista corporizado pelo apartheid. Infelizmente, viu-se novamente colonizado, desta vez por uma elite do seu próprio país. A diferença é que quando a tirania, a cleptocracia e a corrupção operam sob a égide da “libertação”, nada pode ser apontado. Aliás, não só nada pode ser apontado, como é considerado perfeitamente natural que alguém como João Lourenço, sucessor de José Eduardo dos Santos, se apresente no pedestal da moralidade.
Não neguemos os erros do passado. A história é o que é, independentemente das constantes tentativas de a reescrever. Mas aceitar, com um sorriso envergonhado, que tiranetes se sintam na posição de prescrever lições de liberdade e democracia não é, nem pode ser, normal.
A atitude tímida do presidente Marcelo Rebelo de Sousa é o evidente resultado de um espartilho diplomático, de uma tirania do cerimonial. Não se esperava que abandonasse a sala num momento como aquele, nem tampouco que respondesse num tom incendiário. No final de contas, o presidente angolano não mencionou mais Portugal no seu discurso nem enveredou pelos disparates reparacionistas. O que sim se esperava era que o PR se pronunciasse, no momento oportuno, sobre o caso, reconhecendo os erros do Estado Novo, reforçando o compromisso de Portugal com a liberdade, e expondo – diplomaticamente – as hipocrisias de Lourenço. Porque a diplomacia pode ser um espartilho, mas não deve ser um garrote.