Os orçamentos são cada vez mais uma ficção. Necessária para que o show continue, mas ficcionada. É quase impossível avaliar a sua execução substantiva. Ela é formalmente praticada, dois anos depois, através do relatório sobre a conta geral do Estado. Constitucionalmente, pelo Parlamento, com base em pareceres do Conselho Económico e Social (CES) e do Conselho das Finanças Públicas (CFP). Sessões normalmente tépidas, uma a seguir à outra, com escassos deputados a interessarem-se pela forma como os executivos gastaram o dinheiro público. Os documentos apresentados costumam ter qualidade, o do CFP centrado sobre o cenário macroeconómico e o do CES sobre as políticas públicas. Brevemente apreciados, têm o destino habitual: a gaveta em tempos passados, a nuvem digital agora. Poucos académicos se interessam por uma análise comparativa longitudinal. A questão das prioridades raramente é debatida, por vezes o Tribunal de Contas interessa-se, com efeitos demolidores localizados, mas nunca sísmicos. Resumindo: a nossa gestão orçamental pública de pouco serve para a avaliação das políticas públicas.
Todavia, tem utilidade e torna-se indispensável, por várias razões: (a) acompanhar a despesa pública reportada a Bruxelas e aos media; (b) enxertar nela mecanismos do tempo do Doutor Salazar, como as cativações, libertadas a conta-gotas, congelando o gasto e também o progresso; (c) fixar um padrão – os famosos duodécimos – que atemorize potenciais fatores de crises governativas; (d) desencorajar veleidades despesistas imaginativas; (e) sonhar com orçamentos-programa ou na versão mais radical, com o ZBB (zero based budget). E sobretudo serve outra finalidade nacional: alimentar o hemiciclo parlamentar, ocupando-o durante várias semanas com milhares de propostas de alterações, centenas de chamadas à responsabilidade dos parlamentares pelos governos e escassas dezenas de úteis alterações, a par de outras rapidamente esquecidas.
O debate serve ainda outra finalidade: gerar, manter, confirmar ou anular ameaças de voto de bancadas com peso decisivo. À data em que escrevo, desvendou-se a dúvida sobre o voto do segundo partido do hemiciclo. A ficção do potencial apoiante desfez-se antes da votação final. Claro, sem efeitos práticos, uma vez que o PS abrira o jogo logo no início. O governo nem sequer tremeu, sabia que se não fosse por um, seria viabilizado pelo outro. A ambiguidade resolvida poupou cartas ao mais irrequieto, para futura jogada.
O Governo atual anunciou uma intenção positiva: banir, ou pelo menos reduzir fortemente os chamados ‘cavaleiros orçamentais’, ignoradas e obscuras alterações, só percetíveis por fiscalistas ou deputados argutos, que podem abrir ou fechar portas de fortuna, de modo aparentemente inócuo. Veremos se o vai conseguir. Reduzidos os ‘cavaleiros’, nem por isso o bordado orçamental ficará mais legível.
Dir-me-ão que se passa o mesmo ou algo de semelhante em outros parlamentos com longa história. É verdade, mas com o mal dos outros sempre pudemos bem. O que nos faz falta é a análise política continuada, longitudinal, indispensável para comparar legislaturas. E transversal, mais difícil, para avaliar custos de oportunidade e políticas. A avaliação das políticas públicas através da revisão da despesa pública é hoje um instrumento de eleição da moderna gestão pública. E lá vamos nós ter de esperar pela visão distanciada dos que nos observam, sejam as agências de rating, a rapaziada de Bruxelas e Frankfurt, ou os do Château de la Muette, na OCDE em Paris.