As cada vez mais frequentes proclamações a respeito da necessidade de reformular ou mesmo acabar com a instrução trazem-me sempre à memória uma frase do magnífico filme de John Ford O Homem que Matou Liberty Valance. Frase essa que deveria ser ensinada nas escolas, desde tenra idade, a ver se reduzíamos um bocadinho o tamanho e a intensidade das perceções que nos encandeiam, e filme esse que deveria ser de visualização obrigatória para os agentes do mundo forense e, já agora, para os jornalistas do chamado ‘jornalismo judiciário’, pelo menos duas vezes por ano, como medida de higiene mental. Reza assim a frase, cito de memória, mas creio que não me atraiçoa: «When the legend becomes fact, print the legend».
Ora, por falar em lenda, ocorre-me perguntar, entre o mais: De onde tiraram a ideia de que a instrução foi com o tempo transformada num pré-julgamento? Não foi certamente dos sucessivos cortes feitos pelo legislador no seu regime legal desde 1987, com destaque para o definitivo fim do recurso da decisão de pronúncia, levado a cabo há mais de dez anos, nem foi da jurisprudência (de várias instâncias) restritiva sobre os seus âmbito e finalidades? Também não deve ter sido de certas visões sobre a instrução como um carimbo jurisdicional da acusação, e muito menos deve ter sido de certas práticas de alguns juízes (que, em matéria de filmes, prefeririam a Liberty Valance outro filme, Roy Bean, sobre o juiz que decide para lá do Pecos), os quais, se críticas faziam ou fazem ao MP e à investigação e/ou à acusação, seria serem brandos antes de as coisas chegarem à apreciação do dito juiz das liberdades e garantias? Aliás, já escrevi e publiquei um texto chamado Obituário da Instrução em Processo Penal, e entre as datas da escrita e da publicação e hoje não mudou muito, embora também tenhamos podido ver, aqui e ali, alguma resistência ou alguma recuperação quanto à finalidade central da instrução, pela mão de juízes que não têm o Pecos por fronteira pessoal de tudo poderem (que os há, e vários, embora muitos desses enfrentem outro problema grave, de que ninguém fala, que se prende com o facto de a agenda de um juiz de instrução ser dificilmente gerível, entre toneladas de tarefas em inquéritos e instruções).
Portanto, a instrução não é nada um pré-julgamento, nem se transformou nisso, antes aliás pelo contrário, porque o legislador tem cortado e a jurisprudência tem podado. Por exemplo, os cultores e os impressores da lenda, com destaque para os tudólogos que sabem coisa nenhuma ou para os arautos de uma certa visão do processo tocado a pingalim, sabem – além de que não há recursos de pronúncias que confirmem acusações, nem sequer de questões prévias ou nulidades – que o juiz decide, como bem entende, se faz as diligências de prova requeridas ou se as não faz, e não cabe disso reação, a não ser reclamar para o próprio juiz que assim decidiu? E sabem esses mesmos cultores ou impressores que a Constituição fala em instrução? E sabem que não é coisa de somenos ser submetido a julgamento? E sabem que após anos e anos de inquéritos, com toneladas de papel, o juiz de instrução tem, nos termos da lei, escassos meses para decidir, e uma agenda infernal de muitas e variadas diligências de inquéritos pelo meio? E sabem que o inquérito é uma fase essencialmente inquisitória, com pouco ou nenhum contraditório, pelo que se pode chegar a julgamento, se a instrução for suprimida ou reduzida a fantochada, com pouca ou nenhuma oportunidade de defesa? Et cetera. Sabem lá, ou então não querem saber.
Só interessa dizer umas coisas, ou repetir o que se ouviu dizer, ou então alimentar o tal processo a toques de pingalim. Ou então – ah, isso sim, cada vez mais – medir o mundo todo por um único processo, o ‘tal’ processo, o ‘dito cujo’, o processo que é singular em tudo, e a partir do qual, e dos ódios e de outras paixões que ele gera, se quer ler o mundo. Mas isso é, além de não compreender bem a árvore (com a cegueira das paixões), confundir a floresta com ela.