O Brasil é formalmente independente desde 1822. Mas a autonomia económica data de 1808, pouco depois da chegada da família real, com o decreto de abertura dos portos às nações amigas que interrompeu a relação de dependência colonial, precipitou a Revolução Liberal de 1820, levou ao retorno da coroa a Portugal e culminou com o processo independentista.
Porém, os portugueses e os outros europeus não retornaram após a independência, como sucederia nas colónias africanas no século XX. Os que lá estavam e os que depois chegaram construíram o Brasil de hoje, com sucessos e insucessos. O povo brasileiro resulta da miscigenação de diversas etnias: de povos autóctones, portugueses e africanos, que foram complementados por vagas de imigração de italianos, japoneses, espanhóis, alemães e levantinos que lá aportaram.
Quem gosta do Brasil lamenta que o futuro radioso permaneça adiado por um presente complicado por instituições falhadas. Aos pseudointelectuais brasileiros que demonizam os portugueses gosto de recordar que, ao contrário deles, só sou herdeiro dos que ficaram por cá. Os responsáveis do que é bom ou mau são eles e os seus antepassados.
Mantemos uma relação próxima, feita de cumplicidades, de afetos e de desafetos, de trocas culturais intensas. Cerca de 61% dos brasileiros veem Portugal como um país com oportunidades para melhorar a vida e 6% consideram as terras portuguesas um bom local para morar. Esse facto irrita, obviamente, os “petistas” brasileiros: os que estão entre nós, e que exigem do Estado português coisas que nunca conseguiram ter no seu país, e os intelectuais que regularmente dão à costa para, generosamente pagos pelos nossos complexos de culpa, nos insultarem.
Vem tudo isto a propósito da exposição Complexo Brasil, patente na Fundação Gulbenkian, e do texto de Eliane Brun inserido no respetivo catálogo, em que esta se queixa dos descobridores portugueses por terem chegado às praias brasileiras e disseminado a sífilis. Brun não tem origens autóctones, ou africanas. Gaba-se de ser tetraneta de imigrantes italianos. Admito que não tenham levado doenças, mas não foram em ação humanitária. Foram à procura do Eldorado. Claro que Brun entenderá que ter um apelido friulano é muito mais chique do que chamar-se Silva, mas isso é um tique piroso de paulista.
Calculo que saiba que Portugal aboliu em 1869 a escravatura em todos os seus territórios. Contudo, a abolição total do esclavagismo no Brasil só ocorreu em 1888, com a Lei Áurea. Ou seja, quase 70 anos depois da independência. Como fala de cátedra da sífilis no século XVI, não pode desconhecer o relatório de 2014 da Comissão Nacional da Verdade que revela que cinco mil índios foram mortos, na década de 1950, por «aviões que atiravam brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola», com a conivência do governo federal. Não ignorará que a desflorestação da Amazónia, devastadora para os índios, não se iniciou antes da independência e só foi possível pela corrupção que envolveu a governação brasileira dos últimos 100 anos.
A desculpabilização assenta bem à cultura woke, que está na moda no Brasil e tem como mentores esta intelligentsiaque só contribui para que o seu país nunca saia da cepa torta. Isto só nos diz respeito porque há uma parte, ainda que minoritária, da comunidade brasileira que assume particular militância nestas causas, exigindo reparações e também que lhes sejam garantidos direitos em Portugal que os seus governantes não lhes proporcionam no seu país.
Convirão que, se os portugueses que vivem no Brasil manifestassem queixas recíprocas, os ‘petistas’ acusá-los-iam de neocolonialismo. Se a senhora Brun e os seus camaradas querem um registo sério sobre a forma como, depois da independência, os seus antepassados trataram os povos autóctones, deveriam ler Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss, e conhecer os seus trabalhos de campo sobre os povos indígenas no Brasil Central, nos anos 30 do século passado. Será um bom tema, se calhar, para uma futura exposição sobre o Brasil.