As reações políticas ao arquivamento do ‘caso Spinumviva’ confirmam o que tenho escrito nos últimos anos: a classe política é a principal responsável pela perda de reputação dos seus agentes junto da opinião pública. Nesta situação em particular, sabemos que a denúncia teve origem na classe política: Ana Gomes assumiu-se como denunciante. Mas foi uma exceção em mais um nado-morto.
O Ministério Público investigou, averiguou as notícias publicadas na comunicação social – que se empenhara na denúncia e tivera acesso a fontes – e concluiu que não havia qualquer ilícito. O primeiro-ministro não cometera qualquer ilegalidade. Note-se, porém, que a comunicação social não alinhou toda pelo mesmo diapasão. A investigação jornalística de Luís Rosa, divulgada pelo Observador, já apontava no sentido do arquivamento. E Rosa não é um jornalista qualquer.
Pelo meio, tivemos eleições exclusivamente determinadas pelo caso. Ou, mais precisamente, pela forma como os agentes políticos agiram. Como sucedera na Madeira com Miguel Albuquerque, os eleitores reagiram e deram o benefício da dúvida a Luís Montenegro, reforçando a posição da AD.
Restava à oposição a esperança de que o primeiro-ministro pudesse ser acusado. Frustrada a expectativa e encerrada a questão jurídica, os políticos que desejavam que Montenegro fosse arredado do cargo por uma eventual acusação nem assim se conformaram. Continuaram a insistir na tese da ilegalidade, transferindo a suspeita para o Ministério Público. E também a comunicação social não se conformou com o comunicado lacónico, resumido, essencial e preciso do procurador-geral da República.
Pedro Nuno Santos, o grande responsável e também vítima das precipitadas eleições, apareceu como um irmão siamês de André Ventura. Foram poucas as vozes que defenderam a ética republicana e denunciaram a irresponsabilidade. Fernando Medina, que já sentiu o peso de uma acusação infundada, defendeu que o ‘caso Spinumviva’ ficou encerrado nas suas três dimensões – política, ética e legal – e argumenta que tudo o que aconteceu levou à ascensão da extrema-direita, sendo «perfeitamente claro o profundo erro que o PS cometeu».
Numa democracia adulta, que se quer resiliente, é necessário escrutínio, sem nunca deixar de respeitar as regras do jogo. Os detentores de cargos públicos devem estar preparados para serem questionados e esclarecer eventuais dúvidas. O escrutínio pode ser jurídico ou político, e cada um tem o seu espaço. As leis aplicam-se no primeiro caso, e as consequências políticas devem ser retiradas pelos eleitores no segundo. A fronteira entre os dois escrutínios deve ser respeitada, para evitar a judicialização da política ou a politização da justiça.
Infelizmente, a classe política tem violado sucessivamente essa fronteira, e as comissões de inquérito transformam-se muitas vezes em pseudojulgamentos. A política reduz-se à procrastinação, e isso causa uma rápida degradação do sistema político e alimenta o populismo.
Sim, a classe política entrou em autofagia. Por muito que reclame contra o Ministério Público, denuncie a quebra do segredo de justiça ou aponte o dedo à comunicação social, o pecado original está nos políticos.
Ora, é preciso respeitar a separação de poderes e encontrar um equilíbrio entre poder judicial, legislativo e executivo. É urgente denunciar o falso moralismo e consensualizar uma nova ética, que garanta que os políticos beneficiam da presunção de inocência. Perdemos uma maioria absoluta e tivemos duas eleições num curto espaço de tempo, justamente, por esse princípio não ter sido respeitado. A manter-se esta tendência, faremos das cinzas da democracia um trampolim para as forças antidemocráticas, que chegadas ao poder esquecerão de imediato as suas obsessões com a transparência e a decência.