Ora bolas

Os campeonatos internacionais de futebol demonstram-nos a irracionalidade do patriotismo. Imaginemos, por exemplo, que Portugal está a jogar contra a Alemanha e, desde os primeiros minutos, a perder. Conseguem seguir esta linha imaginária? Ouço uma multidão gritando que sim. Portugal sempre foi óptimo a imaginar. Imaginem também que passa diante do ecrã de televisão uma…

Pior: essa indiferente pensa até (embora, por amor à vida, nem às paredes o confesse) que seria pedagógico que a Selecção portuguesa perdesse rapidamente e arrumasse as botas, de modo a que as cabecinhas reinantes e reinadas deixassem de funcionar só em função dos rapazes da bola. No entanto, a indiferente dá por si sentada diante do jogo a vituperar o lindo serviço dos avós dos alemães e dos pais dos sérvios, num ataque de Memória Histórica iluminado pela força épica d’ Os Lusíadas. Quatro golos alemães mais tarde, a chama do patriotismo extingue-se de novo no coração da indiferente – mas deixa-a pensativa. 

Há mais no jogo do que o jogo; é também isso o que torna o futebol tão contagiante. O modo como a equipa se organiza em campo e as atitudes individuais de cada jogador dizem muito da cultura profunda do país. Portugal abriu a sua participação no Mundial obedecendo a dois velhos e desastrosos provérbios portugueses: «Roma e Pavia não se fizeram num dia» e «Até ao lavar dos cestos é vindima».

Estas máximas pátrias estabelecem o culto da procrastinação e do desenrascanço limite, e são prática corrente em toda a parte: é por isso que os computadores das Finanças emperram no último dia de entrega do IRS, que os organizadores de eventos exibem olheiras de três metros e temperamentos irritadiços quando chega o grande dia, e que a lamúria é um desporto ainda mais popular do que o futebol: nunca temos tempo para nada porque engonhamos o mais que podemos, até que, no último minuto, somos possuídos pelo fantasma do Infante D. Henrique. Costumamos chamar brio a esse arremedo tardio, mas é mesmo uma fuga para a frente, como aliás o foram os Descobrimentos. 

No combate futebolístico contra a Alemanha, nem um bocadito de brio brilhou; o seleccionador explicou que o jogo estava a correr muito bem até ao primeiro penalty, e que, depois desse infausto acontecimento, a equipa desmoralizou. Sucede que nem dez minutos tinham sido jogados. Além disso, acusou o árbitro – que deveria ter marcado um penalty a favor de Portugal, sim; mas o homem já estava fora de si com as cabeçadas de Pepe e os protestos constantes de Ronaldo, que lançou muito as mãos ao céu e quase nada os pés à bola. 

Os jogadores estavam «nervosos», dizem os entendidos; os ‘nervos’ são uma constante nacional resultante da falta de espírito de equipa. Quando as coisas não correm bem, fazemos birras e arranjamos bodes expiatórios; um ou outro esticam-se heroicamente, tentando, num lance, salvar a honra da Pátria, e acabam com os músculos desfeitos, como aconteceu a Fábio Coentrão. 

A palavra mais difícil de escapar da boca de um português é «errei». Não ouvimos nada que se pareça a um pedido de desculpa, porque em Portugal a culpa é sempre dos outros. Uma cultura de desresponsabilização custa a desfazer – e os exemplos, da política ao futebol, mostram que a vontade de mudança é igual ao número de golos de Portugal neste primeiro jogo: zero. 

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